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Cuidado com a mente também é responsabilidade das empresas

Período pós-pandemia elevou a necessidade de se falar mais sobre a saúde mental dos profissionais, fator que impacta diretamente os resultados das organizações

Cada vez mais competitivo, dinâmico, exigente e incerto, muitas vezes o mercado de trabalho vem sendo reconhecido pela pressão por resultados, aumento das demandas, demissões em massa, conflito de gerações, ambientes tóxicos, bem como pela falta de reconhecimento e empatia. Tais fatores, que representam uma pequena amostra da atual realidade em muitas organizações, desencadeiam um cenário preocupante, com altos índices de colaboradores com a saúde mental comprometida, especialmente após a pandemia de Covid-19. 

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as estatísticas apontam que um a cada cinco profissionais pode sofrer de algum problema de saúde mental, o que impacta diretamente nos resultados das empresas, devido à perda de produtividade e faltas ao trabalho. Entre as doenças mais recorrentes no ambiente corporativo, segundo Fátima Macedo, CEO da Mental Clean, consultoria especializada em saúde mental no trabalho e do trabalhador, estão o estresse, os transtornos de humor (como depressão unipolar e o transtorno bipolar), os transtornos ansiosos e a dependência química, sendo estes multicausais e não só decorrentes do trabalho. “O estresse ocupacional também é um dos problemas frequentes e, este sim, podemos afirmar que é uma questão decorrente do trabalho”, completa a CEO.

Foto de Fátima Macedo

 Fátima Macedo

Outro distúrbio psíquico que também está intimamente ligado à carga excessiva de trabalho, podendo levar à exaustão física e mental, é a Síndrome de Burnout ou síndrome do esgotamento profissional, diversas questões psíquicas têm sido amplamente discutidas na sociedade. É o caso, por exemplo, da síndrome do impostor. Embora não seja considerada uma doença, a condição está relacionada à baixa autoestima, insegurança, medo, autocobrança elevada, além da sensação de não merecimento e desconfiança da própria capacidade. “Nestes casos, há uma distorção da autopercepção que pode atrapalhar no desenvolvimento da carreira. Por isso, a avaliação de um profissional qualificado é fundamental para diagnosticar um problema dessa natureza”, orienta Fátima.

Para a CEO da Mental Clean, o mundo do trabalho vive um grande paradoxo, pois mesmo com a evolução tecnológica, as melhorias contínuas de processos e o discurso de uma liderança humanizada com foco na área social do ESG (sigla que congrega atitudes relacionadas ao meio ambiente, social e governança), os casos de adoecimento mental e afastamentos continuam numa crescente. “Em muitas empresas, o discurso não bate com a prática, a regra é fazer mais com menos e o trabalhador é pouco ouvido. Há metas, muitas vezes inalcançáveis e abusivas, além de ambientes tóxicos, nos quais manda quem pode e obedece quem tem juízo e contas para pagar”, relata. 

Foto de Jaqueline Modesto

      Jaqueline Modesto

Impacto nas organizações

Dados do relatório “Diretrizes sobre Saúde Mental no Trabalho, publicado pela OMS em setembro de 2022, estimam que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente por causa da depressão e da ansiedade, custando à economia mundial quase US$ 1 trilhão. Apesar do prejuízo, o Atlas de Saúde Mental 2020 da OMS, lançado a cada três anos, revela que apenas 35% dos países relatam ter programas nacionais de promoção e prevenção da saúde mental relacionada ao trabalho.

No Brasil, as dificuldades mais recorrentes ao implementar ações voltadas à saúde mental, de acordo com Jaqueline Modesto, fundadora da consultoria Spark Minds, focada em soluções para a saúde mental das empresas, são basicamente a priorização e a verba disponível para tratar o tema. “O que temos visto são empresas querendo contratar palestras pontuais sobre o assunto e isso até pode proporcionar algum tipo de impacto, mas nada efetivo e duradouro. Nosso papel é ampliar a visão das organizações sobre os cuidados de saúde mental, tratando não só a ponta do iceberg, mas sim a base toda”, orienta a consultora.

Jaqueline ressalta, ainda, o quanto é importante que o RH esteja preparado para colaborar com os gestores e cuidar de cada caso. “Em um ambiente onde há relações saudáveis entre colaborador e líderes, é provável que o funcionário sinta-se à vontade para falar abertamente o que tem passado, buscando ajuda dos líderes e colegas. Caso contrário, a companhia atuará de forma reativa, apenas recebendo os casos, e terá que lidar com as implicações da ausência desse colaborador, que poderá apenas apresentar seu afastamento, sem antes pedir e receber apoio”, orienta.

Ações organizacionais

Os cuidados com a saúde mental no ambiente de trabalho não devem acontecer de forma pontual ou apenas quando os trabalhadores já apresentam adoecimento mental. Para Fátima, o tema precisa ser trabalhado de forma contínua, por meio de um programa estruturado, que contemple a gestão dos fatores psicossociais relacionados ao trabalho. No entanto, caso a empresa não esteja preparada para isso, ela recomenda a abordagem da temática com pequenas ações, desde que estejam alinhadas às necessidades dos funcionários e que tenham continuidade. “Da mesma forma que o adoecimento mental é multicausal, sua resolução também exige cuidado coordenado, utilizando diversas ferramentas e uma gestão contínua”, explica a CEO.

Foto de Madalena Feliciano

 Madalena Feliciano

Segundo Madalena Feliciano, consultora executiva de carreira e terapeuta, para promover, de fato, um ambiente saudável e amenizar os impactos negativos do trabalho na saúde mental dos trabalhadores, é necessário que as empresas invistam em diferentes tipos de ações, como palestras, treinamentos, rodas de conversas entre colaboradores e profissionais da área da saúde mental, day off, confraternizações e happy hours. “Psicólogos e treinadores comportamentais são opções que devem ser trazidas para dentro da organização. Oferecer um plano de saúde que tenha acompanhamento psicológico, programas de incentivo à qualidade de vida e ao bem-estar, lazer e equilíbrio de vida e trabalho, também mostra que a empresa está disposta a ouvir e acolher o colaborador que passa por dificuldades”, aconselha Madalena.

Já Fátima afirma que o gestor, pelo fato de estar em um contato diário com o time, desempenha um papel de suma importância na identificação de que algo não vai bem. “Sempre teremos a correria do dia a dia, metas, reuniões, além do medo de não saber como agir diante do sofrimento do colaborador. Mas, com a prática, percebemos pequenas mudanças que podem sinalizar um problema”, diz.

Entre os sinais que podem ser indicadores de que o colaborador não está bem, segundo Madalena, estão: episódios frequentes de mudança de humor, falta de motivação, estresse, desânimo, isolamento, lapsos de memória, cansaço crônico, irritabilidade, queda de produção, dores de cabeça constantes e falta de ar. “Observar como os colaboradores se sentem e quais pontos estão influenciando no desempenho individual e do time são atitudes que o gestor deve adotar”, aponta.

Foto de Giuliano Milan

         Giuliano Milan

Muito além do universo corporativo

Numa visão mais abrangente do tema, Giuliano Milan, especialista em saúde mental, afirma que não são apenas os postos de trabalho, mas sim a sociedade como um todo, que adoecem mental e emocionalmente as pessoas. Para ele, prova disso são os dados da OMS, que apontam o Brasil como o País mais ansioso do mundo e o quinto mais depressivo. 

“As pessoas já vêm adoecidas antes de entrar nas empresas. A sociedade vem há gerações ignorando o mental e o emocional, sem nem sequer ter incluído estes temas na estrutura escolar, familiar ou de trabalho. Estamos no momento de parar, trazer conscientização e saber que este é um assunto muito mais vasto e que não envolve só o mundo organizacional, sendo um desafio também para as escolas, faculdades, famílias, governo, enfim, para todos. É um problema generalizado, não dá para esperar que um só resolva ou achar culpados, precisamos pensar em estratégias eficazes para começar a tratar esse corpo doente nas empresas”, esclarece Milan.

O especialista comenta, ainda, que os postos de trabalho muitas vezes são comandados por pessoas adoecidas. “Quando os líderes não estão bem mental e emocionalmente, eles vão produzir doenças nas pessoas que os cercam. É um efeito multiplicador”, explica Milan. 

Por isso, é importante, segundo o especialista, que as empresas invistam em educação por meio de dinâmicas, semanas de conscientização, reflexões e, com conhecimento, quebrem os bloqueios dos colaboradores e promovam a saúde emocional.

Foto de Aline Telles

Aline Telles

Jornada de felicidade

Um exemplo do que tem sido feito na prática dentro do mercado de trabalho vem do Grupo Heineken, que em maio deste ano criou a Diretoria da Felicidade, que consolida como pilar estratégico da empresa o bem-estar e o cuidado com os seus colaboradores. “Nossa jornada de felicidade busca um olhar integral para as pessoas, levando em conta sentimentos e emoções, assim como o que acontece dentro e fora do trabalho”, explica Aline Telles, médica, gerente sênior de Saúde Corporativa na companhia e integrante da nova diretoria. 

A iniciativa teve início em 2020 e foram mais de dois anos dedicados à implementação de ações que garantissem maior proteção para o time, além de segurança psicológica em um ambiente de instabilidade causado pela crise sanitária. “O processo envolveu muita escuta ativa, erros e acertos e permitiu trazer novas metodologias, boas práticas de mercado e disseminação de uma jornada de felicidade para 100% da empresa. Tudo isso com o apoio de uma equipe formada por profissionais das áreas de pessoas e saúde, que tornam o trabalho integrado”, explica a gerente.

O indicador da felicidade é medido quinzenalmente, por meio de uma pesquisa enviada para os 14 mil integrantes do time, visando entender o sentimento das pessoas com relação ao trabalho e para além dele. Os resultados gerais são encaminhados para os líderes que, assim, direcionam conversas e ações efetivas para melhorar o ambiente corporativo. “Com o indicador conseguimos as informações, mas o acompanhamento da liderança é essencial para endereçar ações imediatas e efetivas”, comenta a médica.

Segundo Aline, quando as pessoas estão felizes consigo mesmas e com o local em que trabalham, elas produzem mais e ficam mais tempo na empresa. “A felicidade é única e exclusivamente individual. Por mais que trabalhemos no coletivo, sabemos que cada indivíduo importa. Estudos comprovam os benefícios financeiros para os negócios quando se investe na felicidade do time. É uma agenda em que todos podem sair ganhando e isso é ótimo”, afirma.

Tabus e iniciativas

Falar sobre saúde mental, infelizmente, ainda é um desafio. De acordo com Madalena, muitas pessoas associam o tema à loucura e ao desequilíbrio. Porém, no pós-pandemia, há um grande movimento que levou as dificuldades em lidar com a questão para outro patamar. “Pessoas e empresas em geral têm se preocupado cada vez mais e estão abrindo a mente sobre a questão”, diz a consultora.

Para ampliar o debate na sociedade, vários movimentos de conscientização foram criados, como o Setembro Amarelo, voltado para a prevenção do suicídio. “As campanhas são grandes caminhos de transformação, pois quebram tabus e trazem informação de qualidade, no entanto, não dá para falar do tema somente nesses momentos. Nas empresas, é preciso abordar o assunto com todos os públicos, com a participação ativa da alta liderança e alcançar as famílias e a comunidade onde a empresa estiver inserida”, conclui Fátima.




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