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Você não está mais sozinho!

Nova classificação da OMS, em vigor desde janeiro, define a Síndrome de Burnout como uma doença do trabalho, colocando as organizações no centro da responsabilidade pela saúde mental dos seus profissionais 

Acostumada com um grande volume de trabalho, a designer instrucional Perla Mota sentiu que algo estava errado quando começou a perder o foco em suas tarefas. Sem conseguir se concentrar em ações rotineiras, como ler um texto, por exemplo, ela logo percebeu, também, que não tinha disposição nem mesmo para as atividades da vida pessoal. Não demorou muito para que os sintomas físicos também chegassem: palpitação cardíaca, refluxo, esofagite, gastrite nervosa e, por último, uma colite, inflamação do intestino grosso que a levou a ser internada na UTI. 

Depois de inúmeras idas a psicólogos, terapeutas e psiquiatras, tudo por conta própria, Perla foi diagnosticada com Burnout, síndrome que a partir de janeiro deste ano passou a ser considerada pela Organização Mundial da Saúde - OMS uma doença ocupacional, ou seja, derivada especificamente do trabalho. A mudança, já sinalizada pela OMS em 2019, entra em vigor agora colocando as empresas no centro de uma importante discussão sobre saúde mental, principalmente neste momento em que vemos tantos profissionais reclamando da alta carga de trabalho e da falta de processos estruturados durante a pandemia. 

  Perla Mota

Antes desta nova classificação, a Síndrome de Burnout já estava ligada a fatores profissionais, entretanto, não havia uma definição clara sobre ela, o que muitas vezes dificultava o diagnóstico. Foi exatamente isso, inclusive, o que aconteceu com Perla. “Os médicos não tinham total propriedade para falar que o que eu tinha era uma doença do trabalho, pois os sintomas do Burnout se misturavam com muitos outros quadros”, conta. Agora, no entanto, a Síndrome passa a figurar na CID-11 (Classificação Internacional de Doenças, 11ª edição) com uma definição objetiva: estresse crônico no ambiente de trabalho que não foi gerenciado com sucesso. Seus três principais sintomas também estão mais claros: falta de energia e sentimento de exaustão; atitude cínica ou negativa em relação ao trabalho; e redução na eficácia das atividades. 

Índices preocupantes

Em maio de 2021, o termo “como manter a saúde mental” atingiu o pico de pesquisas mundiais no Google, segundo a plataforma Google Trends. Apesar de ser um tema em evidência e amplamente debatido no mundo organizacional, principalmente em meio à adaptação forçada de muitos profissionais ao home office, o número de organizações que de fato se preocuparam com a saúde mental de seus colaboradores nos últimos meses ainda é baixo. Segundo uma pesquisa da Ticket, divulgada no final do ano passado, 78% das empresas do Sudeste não fizeram monitoramentos de saúde com os colaboradores desde o início da pandemia. O estudo, realizado com mais de 350 representantes de empresas, ainda revelou que 49% das companhias não pretendem implantar iniciativas voltadas à descompressão e engajamento dos funcionários no momento da retomada do trabalho presencial. 

O caso de Perla é um grande exemplo desse panorama. Ela conta que a empresa onde trabalhava não mantinha nenhum projeto de saúde e bem-estar para os colaboradores e que quando precisou ser afastada do trabalho pelo INSS, devido aos inúmeros problemas físicos e psicológicos decorrentes do Burnout, ela encontrou um ambiente pouco acolhedor. “O tratamento foi meramente burocrático e distante. Lá existiam muitas camadas de liderança e todos os chefes tiveram a mesma abordagem superficial, de proteção à empresa. Talvez com medo de um processo, eles ficaram em uma posição bem defensiva, dizendo, a todo momento, que meu problema poderia ser outro. Entretanto, metade da equipe ‘burnoutou’ depois de mim”, relembra. Ela explica que a falta de otimização e inteligência na forma como os processos eram conduzidos, além de uma equipe super pequena para uma grande demanda, eram os principais problemas da empresa, que deveria  ter revisto esse modelo de trabalho para que novos casos de Burnout não surgissem.

Mudança de atitude 

Para Ana Maria Rossi, presidente do International Stress Management Association - ISMA-BR, esse tratamento dado à Perla ainda é recorrente, mas tende a mudar com a nova classificação da OMS. “Eu vejo que a conversa dos gestores executivos com esses profissionais que estão sofrendo de Burnout mais parece uma cobrança do que uma oferta de ajuda. Entretanto, é importante que esse gestor possa estar muito consciente da maneira como vai abordar esse funcionário, para não criar ainda mais problemas. Eu acredito que a inclusão do Burnout na CID-11 vai fazer com que os empregadores não acusem o trabalhador de estar fingindo. Isso porque, muitas vezes, eles ainda dizem que o profissional é ‘um fracote’, ‘incompetente’ ou que está ‘desmotivado’”, relata.

                                                               Aline Pedrazzi


Quem concorda com essa nova postura organizacional é Aline Pedrazzi, head de projetos na Caliandra Saúde Mental, empresa que atua junto às organizações na criação e promoção de ambientes mentalmente saudáveis para se trabalhar. Para ela, a pandemia evidenciou muitas questões que antes ainda eram veladas e, associado a isso, ainda há o destaque dado à pauta ESG (Environmental, Social and Governance, na sigla em inglês), que deve mudar o comportamento das empresas. “Práticas que atendam aos requisitos de uma  empresa consciente nas frentes ambiental, social e de governança e que extrapolem os  muros da instituição são agora não só bem-vistas pela sociedade, mas também ‘recompensadas’ financeiramente pelo mercado, refletindo inclusive na valorização das ações e atraindo  olhares dos mais importantes investidores. Diante deste contexto, cuidar da saúde mental  dos colaboradores tornou-se uma necessidade, não só pelo fato desta associação de causalidade direta estabelecida com a CID-11, mas pelo olhar de sustentabilidade e de cuidado com o ser humano e a melhora da vivência em sociedade”, acredita. 

O papel das empresas 

Para Aline, agir estrategicamente e incluir, dentro da cultura da organização, a criação de um ambiente mentalmente saudável para se trabalhar deve ser o principal ponto a ser adotado pelas empresas. Ela explica que, tendo isso claro, as metas devem ser desenvolvidas em dois pilares: o de desenvolvimento organizacional, que engloba capacitação da liderança, dos colaboradores e da área de RH para quebra do estigma, promoção da saúde e prevenção; e o de cuidado, que envolve programas específicos, de acordo com a necessidade de cada empresa. Mesmo assim, a especialista reforça que não há fórmula mágica. “Muitas organizações nos procuram com a queixa de que contrataram todas as soluções que o  mercado oferece, investiram alto financeiramente e não estão obtendo resultados  satisfatórios. O que entendemos é que o fator principal para o sucesso de um programa de saúde mental é a estratégia e articulação das ações. Soluções ‘soltas’, mesmo que em grandes volumes, não conseguem atingir o resultado esperado”, orienta. 

É importante, também, que a empresa esteja atenta aos sinais de desmotivação do colaborador, fator que, segundo Ana Maria, é um indício de que as coisas não estão bem. “O que temos notado nas pessoas com Burnout é a ausência de satisfação e motivação. São profissionais responsáveis por projetos e ações que, muitas vezes, não têm a equipe, o aporte financeiro ou o equipamento necessário, ou seja, problemas que os desestimulam. Essa insatisfação gera a desmotivação e aí é uma questão de tempo para ela ter um problema mais sério. Talvez não chegue ao Burnout, que é o nível mais devastador de estresse que nós conhecemos, mas com certeza haverá sequelas”, diz. 

José Carlos Wahle

Responsabilidade jurídica 

Com a nova classificação da OMS, as organizações passam a ter responsabilidades bem definidas em relação aos seus colaboradores diagnosticados com Burnout e precisam estar atentas a isso. “A principal consequência é que a empresa deverá afastar o empregado e emitir o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), nos termos do art. 336 do Decreto 3.058/1999, uma vez que doença ocupacional é equiparada a acidente de trabalho para todos os efeitos trabalhistas e previdenciários”, explica José Carlos Wahle, sócio da área trabalhista do Veirano Advogados. 

Além do recolhimento do FGTS devido em casos de auxílio-doença acidentário, o colaborador também tem direito à estabilidade provisória de um ano, contado a partir da alta do INSS. Outro aspecto importante, lembra Wahle, é a responsabilidade civil das empresas. “Assim como nas doenças ocupacionais típicas, o empregador poderá ser condenado ao pagamento de indenização por danos morais”, adverte. 

O advogado lembra que em processos judiciais já iniciados, a nova classificação não produz nenhum efeito automático, mas que, mesmo assim, as empresas devem ficar atentas. "A mudança poderá influenciar na análise do perito médico ou até mesmo do juiz, para estabelecer o nexo de causalidade entre o trabalho e a doença”, esclarece. 

Comprometimento pessoal 

                                                         Ana Maria Rossi

Apesar de a responsabilidade das empresas em relação à saúde mental dos seus colaboradores ser clara, é importante destacar que esse também é um dever do profissional, que precisa saber identificar os gatilhos que podem desencadear problemas como o Burnout. Perla, por exemplo, conta que não sabia dizer não e que frequentemente abdicava de programas sociais com os amigos e a família para se dedicar ao trabalho e que, somente após o tratamento adequado, conseguiu entender a importância de alguns limites. “Sigo trabalhando na mesma área em outra empresa, mas agora sei definir prioridades. Minha psicoterapeuta diz que o Burnout é multifatorial e que a gente não pode atacar apenas o gatilho maior, que é o trabalho. Por isso é tão importante essa questão de autoconhecimento, de tomar a medicação certa, de fazer exercício físico regularmente e de alocar o trabalho na vida e não o inverso”, conta.

Ana Maria, do ISMA-BR, também defende que a recuperação do Burnout depende de uma mudança de estilo de vida e de uma reavaliação dos objetivos profissionais e pessoais. Ela ressalta, ainda, que o tratamento adequado é muito importante para que os colaboradores consigam se restabelecer de forma segura e contínua. “Segundo a última pesquisa do ISMA-BR, realizada em 2019, 32% da população economicamente ativa no Brasil sofria de Burnout, um número bastante alto, e eu digo que a maior parte dessas pessoas não consegue se recuperar sozinha, apenas posterga e se aprofunda mais nas consequências. Elas necessitam de terapia, de apoio e, também, de medicamentos”, finaliza. 





Revista Administrador Profissional - ADM PRO
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