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Por que investir em algo que não dá lucro?

Aportes milionários em empresas que (ainda) não são autossustentáveis se tornaram cada vez mais comuns no mundo das visionárias startups. Ao receberem investimentos altíssimos, essas organizações têm o objetivo de crescerem exponencialmente seus negócios, deixando o lucro para o futuro, o que nem sempre pode acontecer

Você já se perguntou de que forma algumas empresas, como o Uber ou o iFood, conseguem oferecer tantos descontos e preços baixos aos seus clientes? Ou, ainda, como esses negócios, do dia para a noite, eclodem suas atividades e se tornam os novos queridinhos em seus setores? A resposta para essas dúvidas é simples: investimento. Tanto o Uber como o iFood fazem parte de um seleto grupo de startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão, os chamados unicórnios, que atraem somas vultosas de investidores decididos a estimularem o crescimento dessas organizações, na esperança de que elas possam valer muito mais em um futuro breve. Por isso, essas empresas podem passar um longo período sem reportarem lucro, usando suas receitas em iniciativas que visam a expandir os negócios e angariar novos clientes.

No mercado, a lista de startups que, mesmo superavaliadas, ainda não geram lucros (principalmente em um ano fiscal inteiro) conta com nomes bem conhecidos como Netflix, Spotify, Nubank, Tesla e WeWork. Muitas empresas, inclusive, chegam a ir à bolsa de valores para seus IPOs (Initial Public Offering ou oferta pública inicial de ações) registrando prejuízo nos meses anteriores à sua abertura de capital. De acordo com um levantamento do professor Jay Ritter, da Universidade da Flórida, esse foi o caso de 81% dos 134 IPOs realizados nos Estados Unidos em 2018. 

  José Muritiba

Crescimento acelerado 

Com suas atividades baseadas no uso da tecnologia, as startups surgem para resolver algum problema ou necessidade atual e têm a capacidade de expandir suas atividades de forma exponencial. “Crescer de forma rápida e escalável está no DNA das startups”, define José Muritiba, diretor-executivo da Associação Brasileira de Startups - ABStartups, ao explicar por que os valores recebidos para a expansão do negócio e aquisição de novos clientes é imprescindível para essas empresas, inclusive a longo prazo. 

É justamente nesse crescimento acelerado que cada vez mais investidores apostam seu capital. Consequentemente, é por causa desses investidores que o seleto time de unicórnios tem crescido cada vez mais. Para se ter uma ideia, até 2018 não havia nenhuma empresa brasileira (de capital fechado) com valor de mercado superior a US$ 1 bilhão. Hoje, já temos 11: Nubank, 99, Arco Educação, Movile (iFood), Stone, Gympass, Loggi, QuintoAndar, Ebanx, Wildlife e Loft. “Batemos recorde em 2019, ficando entre os quatro maiores ‘geradores’ de unicórnios no mundo, atrás apenas de líderes globais como Estados Unidos e China”, conta Muritiba. Diante desse cenário, é natural que os investimentos aumentem cada vez mais e, em 2019, os aportes em startups giraram em torno de R$11 bilhões, apenas aqui no Brasil. Só o grupo de unicórnios tupiniquins captou mais de US$1 bilhão em rodadas de venture capital no ano passado, uma média de mais de US$100 milhões por empresa, de acordo com o Relatório Corrida dos Unicórnios 2020, produzido pela Distrito, hub de inovação que conecta startups, investidores, organizações e universidades. 

        Cassio Spina

Para cada fase, um investidor 

Cada momento de uma startup atrai um tipo de investidor diferente. No início, quando a ideia ainda está se desenvolvendo, é a vez de investidores-anjo, pessoas físicas que usam seu próprio capital para apoiar iniciativas consideradas inovadoras. Depois, quando as atividades já estão mais consolidadas, os investimentos em venture capital injetam dinheiro para que a empresa possa expandir suas atividades. “Os fundos de venture capital investem capital de terceiros, tem responsabilidade fiduciária e, por isso, estão dispostos a correr menos riscos que os ‘anjos’, geralmente investindo em fases de scale-up.  É comum o coinvestimento com outros fundos, independentes e corporativos, aumentando o networking que beneficia a startup e a probabilidade da ocorrência de novas rodadas de investimento”, explica Andrea Minardi, professora do Insper e diretora da Sociedade Brasileira de Finanças. Há, ainda, os fundos de Private Equity, que atuam quando a startup desenvolve margens lucrativas, fluxo de caixa estável e vai além de gerar receita. 

Assim como cada etapa do negócio precisa de um tipo de investidor adequado, as ameaças nessas operações também são diferentes. Os investidores-anjo são, sem dúvida, aqueles que mais correm riscos, uma vez que apoiam ideias recém-nascidas, ainda pouco testadas no mercado consumidor e, basicamente, sem lucros em suas operações. “Negócios que estão no começo e que são inovadores de verdade são incertos. Não existe inovação sem incerteza”, define Cassio Spina, fundador presidente da Anjos dos Brasil, organização de fomento ao investimento anjo no País. 

Mesmo com todos esses riscos, os aportes feitos pelos anjos não param de crescer. De acordo com Spina, 2018 fechou perto do valor de R$ 1 bilhão de investimento-anjo no Brasil. E, para ele, esse número só não é maior por conta da ausência de políticas que incentivem a prática, como a falta de tratamento tributário em relação a outros tipos de investimentos, ação já realizada em outros países e que ajuda a estimular os aportes nas empresas em estágio inicial. “No Reino Unido, por exemplo, você pode compensar até 50% do que investiu no seu Imposto de Renda”, explica. 

  Andrea Minardi

Quanto vale uma startup? 

A dúvida de todo e qualquer investidor é saber quanto uma startup valerá em um futuro, de preferência bem próximo, para que assim ele possa obter retorno àquilo que investiu. Além de ser primordial para angariar aportes, essa atividade (o chamado valuation) é também necessária na hora em que a empresa decide fazer seu IPO.  Recentemente, a WeWork, empresa mundialmente conhecida por alugar espaços de coworking, viu o seu valor de mercado desmoronar quando decidiu abrir seu capital na bolsa. Avaliada inicialmente em  US$ 47 bi, a empresa passou a gerar desconfiança no mercado, que julgou seu valor superestimado. Não precisou muito para que se descobrissem falhas nos seus processos e, também, na gestão por parte do CEO, Adam Neumann. O resultado foi o cancelamento do IPO e a renúncia de Neumann em meio aos inúmeros escândalos envolvendo o seu nome. 

Mas, afinal, como se chega em um valor como esse? No valuation de uma startup, ao contrário das empresas tradicionais, nas quais o crescimento é linear e um pouco mais previsível, há muitos fatores intangíveis. “Deve-se avaliar a startup considerando por quanto sua posição poderá ser vendida no cenário de sucesso”, explica Andrea, ao mencionar também que “mesmo que a startup não tenha histórico de lucro ou de desempenho, pode-se observar métricas e padrões de crescimento de empresas que estejam em estágios mais avançados, sejam da mesma vertical e tenham modelos de negócios semelhantes”. 

No caso da WeWork, os prejuízos por sua avaliação irreal foram gigantescos, incluindo demissões em massa, venda de bens, suspensão de contratos de locação e uma grande vergonha no mercado financeiro. Já o SoftBank, grupo japonês dono do Vision Fund, principal investidor da empresa, amargou um prejuízo de quase US$ 9 bilhões e seu presidente-executivo, Masayoshi Son, chegou a declarar em entrevista coletiva que seu julgamento sobre o investimento foi ruim em muitos aspectos e que ele estava refletindo profundamente sobre isso.

Os riscos 

“Acertar o momento em que as pessoas estão preparadas para consumir uma nova ideia é o maior responsável pelo sucesso de uma startup.” A frase de Bill Gross, fundador da IdeaLab, uma das primeiras incubadoras americanas, transmite a fragilidade que sustenta a aposta em um negócio iniciante. Por isso, prejuízos milionários, como esse sofrido pelo SoftBank, são um risco pré-assumido pelos investidores, que têm (ou deveriam ter) consciência de que o resultado pode não ser exatamente aquele esperado. 

Para que os riscos, então, sejam pelo menos minimizados, o segredo é diversificar. O SoftBank, por exemplo, é um dos principais investidores em inúmeras startups pelo mundo. Para os investidores-anjo, a regra é a mesma, conforme explica Spina. “O investidor que dilui seus investimentos tem menor risco, pois as estatísticas mostram que o retorno do negócio que dá certo paga não só aqueles outros que deram errado, como ainda gera lucro”. Ele explica, também, que o investidor-anjo deve participar de uma rede, pois esse é o meio mais efetivo de aprender e trocar informações com investidores mais experientes.

“O investidor que dilui seus investimentos tem menor risco, pois as estatísticas mostram que o retorno do negócio que dá certo paga não só aqueles outros que deram errado, como ainda gera lucro”, explica Cássio Spina.

Para Muritiba, da ABStartups, conhecer o mercado e estar por dentro da operação da empresa são outros pontos essenciais para que a aposta tenha um embasamento mais “sólido”. “Existem metodologias e métricas para acompanhar uma startup e para melhor entender suas reais capacidades de retorno e sucesso. Para isso, são necessários alguns conhecimentos específicos do mercado e do modelo de negócio, tal como as métricas CAC (custo de aquisição de cliente) LTV, cash burn, retenção e taxa de crescimento – a exemplo de outras análises que divergem dos modelos tradicionais de negócios”, defende. Para ele, essa relação investidor-empreendedor é essencial. “Quanto mais próximo o investidor estiver e quanto mais ele compreender as operações e atividades dessa startup, maior a chance do sucesso”, esclarece. 

Aposta nas pessoas

A promessa de conseguir escalar um negócio de forma rápida, possível por meio da tecnologia, é o que enche os olhos daqueles que vislumbram uma grande empresa no futuro. Antes disso, porém, está a competência dos empreendedores e do seu time, fator esse que muitas vezes é o responsável pela obtenção de investimento.  

Para Andrea, do Insper, o investidor também precisa saber julgar a capacidade de execução dessas pessoas. Essa opinião é compartilhada por Muritiba, que acredita ser o perfil dos empreendedores a principal característica analisada pelos investidores. “Por esse mesmo motivo é tão comum empreendedores que já tiveram sucesso em negócios passados conseguirem captar recursos para novos negócios”, conta. 

Tanto isso é verdade que, de acordo com o Relatório Corrida dos Unicórnios 2020, 43% dos fundadores das startups bilionárias brasileiras já haviam empreendido antes. Esse mesmo estudo também revelou outro dado importante, relacionado diretamente à gestão do negócio: 74% dos empreendedores possuem pós-graduação na área da Administração. 

       Marília Cardoso

Uma bolha prestes a estourar? 

Depois do caso da WeWork, muitas especulações a respeito da solidez de startups consideradas promissoras surgiram e alguns setores do mercado passaram a questionar se não estaríamos vivendo uma bolha, que a qualquer momento poderia estourar e revelar que projeções muito otimistas são, na verdade, apenas ilusão. 

Para Marília Cardoso, sócia-fundadora da consultoria PALAS, houve uma euforia exacerbada, situação que deve começar a diminuir daqui pra frente. “Num primeiro momento, investidores se empolgaram com novas possibilidades de investimentos, no entanto, a maioria das startups sonha em se transformar em unicórnios, abrindo mão dos lucros pelo crescimento rápido - o que nem sempre é saudável no longo prazo. Acredito que casos como da WeWork, entre outros, evidenciam um certo exagero no brand valuation, já que essas empresas ainda não atingiram maturidade suficiente para conquistar tal valor de mercado”, analisa. 

Já para a professora do Insper, a queda do valor da WeWork fez com que o mercado passasse a se preocupar mais com o modelo de negócios, o plano de lucro e a geração de caixas das startups e já houve um primeiro ajuste nessas avaliações, embora ainda se ouça falar sobre preços excessivos. 

Deu zebra?

Ao mesmo tempo em que o mercado se torna mais defensivo, um movimento nascido nos Estados Unidos, denominado Zebras Unite, passou a defender uma distribuição mais igualitária dos investimentos pelo mundo. Em entrevista à Revista Época, Mara Zepeda, uma das fundadoras da organização, declarou que o atual modelo está falido porque atende a um número muito pequeno de empresas e empreendedores. Além disso, na atual corrida por investimentos, startups e investidores projetam um crescimento veloz com o objetivo de dominarem determinado segmento da economia, fato que, de acordo com o movimento, é excludente. O Zebras Unite defende que negócios menores, inclusivos e colaborativos, muitas vezes criados por mulheres, possam ter oportunidades iguais na busca por capital (um estudo da americana Boston Consulting Group - BCG indicou que as startups criadas por elas recebem em média US$ 935 mil em aportes, contra US$ 2,1 milhões destinados aos homens). 

“Acredito que o movimento das Zebras faz um importante papel de despertar a crítica e uma análise mais profunda sobre a euforia que estamos vendo. Não sou contra investimentos. Pelo contrário. Acho que eles são fundamentais em muitos casos. No entanto, temos visto muitas empresas sem grandes ideias e sem um bom plano de negócios, querendo apenas surfar na onda dos aportes”, analisa Marília, ao constatar que “as startups precisarão provar que são autossustentáveis no longo prazo se quiserem continuar atraindo investimentos para expandir os negócios”.

Além de provarem que serão sólidas no futuro, as startups têm pela frente mais um desafio, criado pela crise repentina que o novo coronavírus impôs ao mundo. O isolamento necessário para evitar a propagação do vírus certamente deixará sequelas na economia de inúmeros países e resta saber como o mercado financeiro irá se sustentar em meio a tantas incertezas e dificuldades. Um capítulo que pode mudar totalmente os investimentos em startups, e que, assim como o sucesso desses novos negócios, é impossível de se prever. 


O dicionário no mundo do investimento

Investidor-Anjo - pessoa física que emprega o seu próprio capital em ideias inovadoras e que, também, atua como mentor dos novos empreendedores 

Venture Capital - tipo de fundo de investimento focado em capital de crescimento para empresas de médio porte que já possuem carteira de clientes e receita, mas que ainda precisam dar um salto de crescimento

Private Equity - modalidade de investimento em que um fundo levanta capital para adquirir participação em empresas já desenvolvidas e obter lucro a médio ou longo prazo com a venda

Scale up - empresas que sustentam um rápido crescimento por um longo período de tempo e de forma escalonada

Bootstrapping - forma de começar um negócio a partir de recursos próprios e limitados, sem o apoio de investidores

Valuation - processo de avaliar e determinar o valor de uma empresa ou companhia, por meio de técnicas de análises quantitativas e qualitativas

Raio-x dos unicórnios no Brasil

Um panorama das startups que conseguiram atrair grandes investimentos e agora valem mais de US$1 bilhão:

  • Até 2018, não tínhamos sequer um unicórnio no Brasil. Agora já são 11: Nubank, 99, Arco Educação, Movile (iFood), Stone, Gympass, Loggi, QuintoAndar, Ebanx, Wildlife e Loft;
  • A maioria das startups brasileiras é B2B, mas os unicórnios são primariamente B2C. Startups B2C exigem mais investimento por conta do custo de aquisição de clientes;
  • O unicórnio médio levou 6 anos para atingir a marca. A Loft foi, de longe, o caso mais rápido, com menos de um ano e meio de operação para chegar no valuation bilionário;
  • O Ebanx, originário de Curitiba, é o único unicórnio clássico que não é do estado de São Paulo. Atenção também para o IPOgrifo* Arco Educação, nascido no Ceará;
  • 74% dos fundadores de startups no Brasil têm pós-graduação na área da Administração;
  • Todas as 19 startups que se tornaram unicórnios ou estão na lista de aspirantes receberam investimento de pelo menos um desses cinco fundos: Qualcomm, SoftBank, Kaszek Ventures, Monashess+, Redpoint eventures;
  • O Nubank é a única startup brasileira entre o seleto grupo de 22 decacórnios (startups com valor de mercado acima de US$ 10 bi).

*Segundo o Relatório, é considerado um IPOgrifo o unicórnio que já abriu o seu capital na bolsa de valores. Já os unicórnios clássicos são aqueles que mantêm o seu capital fechado. 

Fonte: Relatório Corrida dos Unicórnios 2020, produzido pela Distrito



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