A evolução das gerações - CRA-SP
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A evolução das gerações

Em um bate-papo exclusivo, o filósofo, professor e escritor Luiz Felipe Pondé faz uma análise da evolução do comportamento do consumidor ao longo das décadas 

O quanto a prática do consumo impactou a transformação do comportamento das gerações? Para explicar as mudanças nos hábitos e as evoluções que surgiram ao longo das décadas, principalmente com a chegada da revolução digital, a ADM PRO conversou com exclusividade com o filósofo, professor e escritor Luiz Felipe Pondé, que contextualizou as diferenças que mais marcaram a humanidade desde a Silence Generation até a geração Z. Nesta entrevista, o professor explicita seu ponto de vista em relação ao marketing e também sobre o processo de coisificação do capitalismo. Confira. 

Revista ADM PRO - Você acredita que seja possível visualizar diferenças marcantes no comportamento do consumidor ao longo das décadas?

Luiz Felipe Pondé - Diferenças sim. Que seja uma evolução no sentido de que o consumidor esteja, de uma forma ampla, se tornando uma pessoa melhor, um consumidor melhor, não. Porque não acho que a humanidade evolui moralmente, ela evolui tecnicamente. Um exemplo claro: no começo dessa pandemia se falava da humanidade sair mais solidária, mas isso tudo é balela. O ser humano sempre foi dado a uma ligação com certos objetos que denominam seu status, sua capacidade de poder e atração. Há transformações sim, inclusive agora. Por exemplo, muito do consumo está vinculado a objetos que são da tecnologia da informação, ligados às redes sociais. Agora, você tem um consumo de comportamento num nível que não tinha antes, a pessoa vende o estilo de vida dela no Instagram. O comportamento se transformou em objeto de consumo, há um marketing de comportamento que há um tempo não existia tanto.

ADM PRO - Esta mesma diferença pode ser visualizada nas chamadas gerações baby boomer, X, Y (millennials), Z? 

Pondé - Sim por conta de épocas distintas. A geração baby boomer, que inclui as pessoas que nasceram depois da Segunda Guerra, no final dos anos 50 e meados de 60, pertence a outro período histórico e isso, sem dúvida, impacta comportamentos. A própria concepção de geração é uma invenção da propaganda, do marketing americano para vender. Portanto, isso está diretamente vinculado a certos hábitos e objetos de consumo. As gerações que agora chamam de Silence Generation (geração silenciosa, termo usado para se referir à população nascida entre 1925 e 1942), levam esse nome (silence) justamente porque ninguém falava tanto. Com isso, não tinha como capturar desejo ou colocá-los numa rede de conteúdo circulante, pois a vida era extremamente simples e silenciosa, sem esse ruído de todo mundo falando o que quer, manifestando opinião, ofensa e desejo. A concepção de geração é marcadamente determinada por objetos e práticas de consumo. A geração Z há pouco tempo estava gozando dos millennials chamando-os de cringe. Já os millennials achavam que iam salvar o mundo, porque os pais colocaram isso na cabeça deles, de que eram pessoas especiais. Em vez disso, eles acordaram com quase 40 anos, pobres (porque hoje se ganha menos ainda), pagando boleto, já tendo problemas nos exames de saúde, não salvaram o mundo e ainda estão tomando antidepressivo. A geração Z fala porque não paga boleto, mas seus pais estão cometendo os mesmos erros que acometeram os millennials, ou seja, continuam levando muito a sério a molecada. Quando uma criança faz um risco no papel, os pais já acham que é Picasso. Antes de tudo, nos últimos tempos, o grande objeto de consumo é o ego. É a expectativa do ego que vai fazer diferença no mundo. Costumo dizer que o século XXI vai ser da mentira e da psiquiatria, isso muito por causa do marketing mentiroso. Ele se tornou mentiroso quando passou a ser uma ciência que quer salvar o mundo. Quando ele queria convencer a dona de casa a comprar o sabão em pó ‘x’, ele não era mentiroso, estava apenas fazendo o que tinha que fazer. 

         Luiz Felipe Pondé

ADM PRO - Fala-se muito que deixamos de comprar produtos e serviços e passamos a comprar experiências. Como você vê esta afirmação?

Pondé - A própria experiência do cotidiano se transformou em consumo de experiência. Então, você viaja e vai fazer uma experiência de vinhos na Mantiqueira, de queijos na França ou no mosteiro budista no Vietnã. É claro que isso está regado a passagem de avião, a consumo, mas a ideia é a de que você está agregando valor ao seu dia a dia. Tem aí uma coisificação do cotidiano e ele não pode ser a banalidade que é. 

ADM PRO - A transformação do mercado consumidor passa também pela revolução digital, que gera medo em muitas pessoas, principalmente quando se especula que os robôs roubarão nossos empregos. Como você analisa essa questão?

Pondé - Que a transformação técnica elimina profissões é um fato, mas eu olho esse apocalipsismo associado à inteligência artificial com cuidado. Não acho que ela vai acabar com todos os empregos, inclusive está muito no começo para fazer previsão. Entendo que, sim, existam profissões nesse caminho, mas não acho que vá acontecer uma devastação. Entretanto, uma devastação que está acontecendo e que tem a ver com a entrada de processos disruptivos de tecnologia de informação no mercado é o cenário de pessoas com mais de 50 anos perdendo emprego. Isso tem a ver com o fato de todas as empresas estarem se transformando em organizações de dados, criando um gap grande entre pessoas que não foram alfabetizadas no mundo digital e jovens que já nasceram com essa realidade. Existe uma tendência de associar as pessoas mais velhas à televisão preto e branco. E o resultado é o jovem querendo fazer terapia com psicoterapeutas jovens, alunos querendo ter aulas com professores jovens e isso que não tem necessariamente a ver com a tecnologia da informação, mas sim com o resultado do processo da economia capitalista, que vai desvalorizando o que existe e enaltecendo só o que é novo. Essa tendência de tornar obsoleto o profissional cada vez mais cedo já é um fato. Isso é decorrente de um processo sociológico típico da modernização capitalista, burguesa e aqui não estou fazendo propriamente juízo de valor, mas descrevendo o processo, que significa a exclusão de profissionais experientes em áreas que não têm nada a ver. É interessante porque você compra a experiência do turismo, do consumo, mas a experiência profissional é desvalorizada. É típico do processo de coisificação do capitalismo, você transforma uma coisa em um objeto e o objeto real você desvaloriza.

ADM PRO - Você acredita que o comportamento de consumo é ditado pelo consumidor ou pelo marketing?

Pondé - O desejo humano que se manifesta na intenção da compra é uma realidade psicológica, mas que se constitui num vínculo concreto com o mundo à sua volta. Quando eu dava aula para alunos de publicidade há 10 anos, eles aprendiam que um bom publicitário era alguém que sabia o que o consumidor iria querer daqui dois anos, embora ele mesmo, consumidor, ainda não soubesse. Ele observava o comportamento, a tendência, o que estava surgindo, o que seduzia, o que aparecia como fetiche e foi nesse processo que os marqueteiros descobriram como o comportamento em si foi se transformando em um objeto de consumo. Só que hoje, o bom marqueteiro não é aquele que sabe o que o consumidor vai querer daqui a dois anos, mas sim aquele que vai fazer o consumidor querer ‘x’ daqui cinco minutos. O marqueteiro trabalha diretamente com a inteligência artificial e o consumidor, por sua vez, possui uma esfera de desejos que têm a ver com a sua personalidade. Então existe toda uma gama que perpassa esse desejo. É uma área construída antes de você chegar no site para comprar coisas quando, por exemplo, o algoritmo fica jogando coisas pra você na tela do seu celular. Quanto mais consumo generalizado você busca, mais os algoritmos conseguem capturar o seu desejo. O mundo sempre influenciou a nossa vontade e o marketing é uma ciência social aplicada e especializada em formar esse desejo. 

ADM PRO - Sabemos que hoje em dia as startups surgem com o conceito de experiência de usuário em seu DNA. Você acredita que organizações de pequeno e médio porte serão capazes de implementar estes modelos em suas operações?

Pondé - Toda vez que você aumenta muito o espectro de inserção, mais difícil é para você manter um tipo de relacionamento como esse. É claro que a experiência do vínculo com o usuário aproxima e faz com que você tenha um feedback mais próximo e ágil, entretanto quem vai fazer todo esse processo é a inteligência artificial. E eu tenho a impressão de que quanto mais você traz o consumidor para perto, mais chato ele fica. Vamos pegar o exemplo das escolas privadas. Com a classe média tendo cada vez menos filhos, as escolas passaram a se sentir reféns desses usuários (entenda usuários como pais e alunos). Neste cenário, o que os pais querem é que as escolas reforcem a autoestima dos filhos e que eles sejam preparados para serem extremamente bem-sucedidos, ao mesmo tempo em que são muito amados. No meio disso está o professor, que precisa agradar os alunos e seus pais para que eles permaneçam na instituição, sob o risco de perder o emprego caso os estudantes saiam da escola.




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