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A vez do home office

Muitas vezes preterido nas organizações mais tradicionais, o trabalho a distância ganhou novo status durante a quarentena forçada a qual milhares de trabalhadores e empresas aderiram por conta da pandemia do novo coronavírus. Agora, resta saber se, passado esse momento de crise, o home office irá se consolidar como uma prática efetiva dentro das organizações

Estou de home office enquanto escrevo esta matéria. Eu e milhões de profissionais não só do Brasil, mas de todo o mundo. E, assim como as mais recentes informações sobre o novo coronavírus surgem a cada dia, nós também acompanhamos, a todo momento, cada vez mais conteúdos a respeito do teletrabalho, pauta que já estava prevista para esta edição da ADM PRO por considerarmos o assunto extremamente importante para o mercado de trabalho atual. O que não esperávamos, porém, é que o tema fosse, de uma hora para a outra, ser a saída para a manutenção das atividades de milhares de empresas e, também, a única forma de profissionais, nos mais diferentes segmentos, manterem seus empregos. Uma reviravolta e tanto para a prática que, até então, ainda era vista com desconfiança por organizações mais tradicionais.  

Embora o home office tenha avançado muito nos últimos anos, o número de empresas que não mantinham essa política era grande. A pesquisa Home Office Brasil 2018, realizada pela SAP Consultoria em Recursos Humanos, em parceria com a SOBRATT - Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividades, mostrou que 40% das organizações ouvidas não adotavam a prática de home office e 15% delas estavam avaliando a viabilidade de implantação. Ou seja, em mais da metade das 315 empresas participantes da pesquisa, o teletrabalho ainda não era uma realidade. Um número muito alto se considerarmos que 80% das organizações ouvidas estão no Sudeste do País, região que concentra grandes corporações que, via de regra, ditam os rumos do mercado de trabalho para todo o Brasil. 

Cleo Carneiro

Um problema cultural

Nos últimos anos, o avanço da tecnologia viabilizou a realização de inúmeras tarefas a distância, porém, em muitas empresas, essa transformação não foi suficiente para impactar a cultura organizacional. Está aí, de acordo com especialistas, o grande entrave à implantação em larga escala do home office no País. “O problema maior é o da cultura baseada no comando e controle, em vez da cultura de entrega de resultados, que faz muito mais sentido. Isso se reflete na postura retrógrada dos gestores e na necessidade da presença física dos colaboradores”, explica Cléo Carneiro, diretor de Relações Internacionais da SOBRATT e diretor do GOCNTT - Grupo de Consultoria em Teletrabalho. Para ele, as questões ligadas à tecnologia e infraestrutura são muito menos relevantes, uma vez que os recursos tecnológicos, de uma forma ou de outra, precisam estar presentes. 

Nas pequenas e médias empresas a lógica é a mesma e, de acordo com o advogado trabalhista e presidente da SOBRATT, Luís Otávio Camargo Pinto, a desculpa de que a tecnologia é uma barreira apenas revela a resistência dessas organizações aos processos de mudanças. “Há quem sustente que há vantagens e desvantagens para o trabalho realizado remotamente. Eu prefiro dizer que existem empresas que implantam corretamente o teletrabalho e outras não. Se houver uma política correta nesse processo, só há benefícios”, defende. 

Vantagens

A questão cultural ainda é tão forte que, muitas vezes, quando se fala em benefícios na prática do home office, imagina-se que apenas o profissional irá usufruir vantagens, principalmente por conta da eliminação do deslocamento entre sua casa e a empresa. A verdade, porém, é que o retorno é extremamente positivo também para as organizações, incluindo, por exemplo, melhoria do vínculo com colaborador, atração e retenção de talentos, redução de despesas associadas ao espaço físico e, até mesmo, diminuição de licenças médicas ou outros motivos de ausência dos seus colaboradores.

        Adm. Alvaro Mello

O  presidente do ITA - International Work Transformation Academy, Adm. Alvaro Mello, lembra que situações simples, facilitadas por meio da prática do home office, fazem grande diferença no bem-estar do colaborador, o que pode explicar a diminuição nos casos de afastamento. “Isto pode variar desde poder dormir um pouco mais, estar em casa quando as crianças chegam da escola e até colocar a roupa na máquina de lavar ao invés de deixar a pilha acumular esperando o fim de semana”, elenca. 

Dentro desse panorama, há ainda outros pontos importantes. Implantar uma política de home office dentro das organizações colabora com a “melhoria da mobilidade urbana e com a redução dos níveis de emissão de poluentes pela não necessidade de deslocamento”, lembra Carneiro, além de favorecer uma necessidade real dentro do mercado de trabalho: a inclusão das pessoas portadoras de deficiência. 

Luciane Aquino, sócia da Organica Evolução Exponencial, ressalta que é por meio da prática do home office que questões muito importantes conseguem se tornar reais. “O trabalho remoto dá empregos a pessoas em cidades e países onde essas vagas não existem e também permite que minorias conciliem o trabalho com o cuidado de filhos e familiares. É um gerador de oportunidades”, exalta. 

Luís Otávio Camargo Pinto

Questões trabalhistas

Depois da reforma trabalhista, implementada no final de 2017, muitos aspectos do trabalho a distância foram regulamentados. A principal mudança, de acordo com o presidente da SOBRATT, foi a maior segurança jurídica, uma vez que as obrigações (tanto do empregador, como do empregado) ficaram mais claras. “Pode-se afirmar que todos os direitos e deveres das partes são os mesmos dos demais contratos de emprego, devendo ser observadas algumas peculiaridades: o teletrabalho deve constar expressamente no contrato de trabalho; poderá ser realizada alteração do regime de home office para o presencial por determinação do empregador, observado o prazo mínimo de 15 dias; previsão em contrato de trabalho quanto à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento de equipamentos, infraestrutura e despesas relacionadas à prática; obrigação de o empregador instruir os empregados, ‘de maneira expressa e ostensiva’, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes do trabalho e ausência de controle de horários como regra geral”, explica Camargo Pinto, ao ressaltar que, de acordo com a análise literal da legislação, o empregador que colocar seu colaborador em regime de home office, mas não de forma preponderante, ou seja, apenas um ou dois dias na semana, deverá continuar adotando os mesmos critérios de controle do regime presencial. 

O advogado lembra, no entanto, que diante da publicação do decreto que reconheceu o estado de calamidade pública no País, no último dia 20 de março, em função da propagação do novo coronavírus, o governo federal editou a Medida Provisória nº 927/2020, inserindo um capítulo específico sobre o teletrabalho a fim de flexibilizar alguns pontos e trazer maior detalhamento para novas questões, principalmente para empresas e trabalhadores que viram, de uma hora para outra, o seu modo de trabalho mudar. A alteração está, basicamente, na possibilidade de o empregador instituir o modelo de trabalho a distância, durante esse período, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho, desde que a notificação ao empregado seja feita com antecedência mínima de 48 horas. 

“Quando se adota trabalho remoto, o papel do líder deixa de ser o de comandante controlador e passa a ser o de motivador. São gestores que devem trabalhar com transparência total, deixando claros os objetivos e restrições e mostrando qual a razão do que precisa ser atingido. Parece uma mudança simples, mas é a mais complexa de todas”, analisa Luciane, da Organica. 

Planejamento 

Implantar uma política de home office de forma adequada, no entanto, requer planejamento, engajamento e comunicação eficiente por parte dos gestores e dos colaboradores. É consenso, ainda, que o sucesso da prática dentro das empresas não acontece da noite para o dia e que, independente do tipo da organização ou setor de atuação, a mudança de mindset é fundamental. “Quando se adota trabalho remoto, o papel do líder deixa de ser o de comandante controlador e passa a ser o de motivador. São gestores que devem trabalhar com transparência total, deixando claros os objetivos e restrições e mostrando qual a razão do que precisa ser atingido. Parece uma mudança simples, mas é a mais complexa de todas”, analisa Luciane, da Organica. 

Após a conquista dessa maturidade organizacional, o passo seguinte é estabelecer uma política clara, que envolva vários setores da organização e esteja atenta a itens importantes como segurança da informação e saúde do colaborador. O presidente do ITA orienta que os gestores sejam totalmente envolvidos nessa implantação, no sentido de monitorar e fazer as correções no programa quando suas equipes não alcançarem as metas e os objetivos estabelecidos. Ele também lembra a importância da manutenção da comunicação e dos relacionamentos, para que não haja um isolamento social ou, até mesmo, a sensação de não pertencimento por parte do colaborador. Por fim, o administrador ressalta que a realização de treinamentos de capacitação tecnológica é fundamental, principalmente quando houver a adoção de novas ferramentas de trabalho. 

Às pressas 

Se em momentos de calmaria a implantação do home office requer planejamento adequado como, então, fazer a adoção da prática de uma hora para a outra? Para o presidente da SOBRATT, a chave para essa questão parece estar, mais uma vez, no comprometimento das pessoas. “Quando se fala em política de implantação, não se trata apenas de questões jurídicas. Se as empresas, além dos aditivos e políticas, não capacitarem e sensibilizarem os gestores e colaboradores, certamente estarão retrocedendo em suas políticas de recursos humanos”, defende. 

       Gabriel Tosto 

Gabriel Tosto, head de Canais e Vendas da TeamViewer América Latina, sugere algumas ações que podem ajudar as empresas nesse momento. “Alguns quesitos são fundamentais, como trabalhar com metas claras, ter de duas a três reuniões de 30 minutos por semana com as equipes, utilizar uma ferramenta de colaboração moderna com funcionalidades de ponta, incentivar seu uso e manter tópicos de discussão em grupo para preservar a transparência”, aponta. Para ele, essa ainda é uma grande oportunidade das organizações capacitarem seus colaboradores para voos mais altos. “É igualmente fundamental às empresas promover um crescente sentido de importância às suas equipes remotas e em home office, mostrando a eles que não são apenas funcionários, mas empreendedores da própria carreira. É um status divisor de águas para o colaborador, adquirido através do conceito de ownership, que deve ser incentivado pelas companhias. Os líderes do futuro necessitarão de tal habilidade para transmitir o sentimento de responsabilidade e engajamento”, acredita. 

É importante entender que a urgente implantação da prática não eliminará um planejamento mais criterioso depois que essa fase passar. “Cada empresa poderá desenvolver o seu processo de implantação, de acordo com as suas características e grau de conhecimento do assunto. Passada esta fase crítica, é fundamental que a organização proceda a uma efetivação mais estruturada com base nessa experiência, pois assim ela trará resultados completos e duradouros”, defende Carneiro. 

Adm. Roberto Max Ferreira

Disciplina

Se o planejamento é essencial para as organizações adotarem o home office,  para os profissionais a atitude indispensável é a disciplina. O administrador Roberto Max Ferreira trabalha via home office, de forma não contínua, há pelo menos seis anos. Atualmente atuando como PMO (executivo de projetos) em uma multinacional, ele conta que em todas as empresas pelas quais passou nos últimos dez anos, pelo menos, mantinham algum tipo de política de teletrabalho e, para ele, a disciplina e a criação de rituais foram primordiais para sua adaptação. “Cada pessoa vai entender como lidar com as distrações e como manter a disciplina, mas os rituais ajudam muito neste processo. Se você está acostumado a acordar, tomar banho e trocar de roupa antes de ir à empresa, fazer isso em casa pode ser um sinal para que sua mente entenda que agora é o momento de trabalhar”, sugere. 

Estabelecer uma rotina, escolher um local silencioso na casa, fazer pausas no decorrer do dia, alimentar-se bem, usar roupas confortáveis (mas apropriadas), elaborar listas de atividades e manter-se conectado com os colegas (por meio da tecnologia) são algumas dicas de especialistas. Essa, no entanto, não é uma receita infalível. “Qualquer profissional que realiza atividade intelectual e utiliza sistema de informação e comunicação pode trabalhar a distância, mas não é possível afirmar que todos terão a mesma performance”, salienta o presidente da SOBRATT. Para ele, é certo que, após a experiência atual de home office, muitos profissionais cheguem diferentes às empresas, relatando uma experiência muito positiva. Entretanto, outro grupo irá revelar que ainda prefere o trabalho presencial. “Esses profissionais prezam pelo convívio físico com os seus colegas e sentem dificuldades com o trabalho e as relações familiares no mesmo ambiente”, explica.

No caso do Roberto, a sua experiência anterior fez com que ele não tivesse nenhuma dificuldade no atual cenário. No entanto, o administrador lembra que a sua situação é muito diferente de grande parte das famílias brasileiras. “Eu consigo superar as distrações com alguma facilidade, mas eu não tenho filhos e minha esposa trabalha em home office full time também. Tudo isso ajuda. Quem tem filhos, por exemplo, precisa de uma disciplina muito maior”, diz. 

       José Ricardo Amaro

Exemplo de sucesso

Uma das empresas pioneiras na implantação de home office no Brasil, a Ticket mantém, desde 2005, uma política de trabalho a distância que, ao longo dos anos, foi se aprimorando e permitindo a participação de cada vez mais pessoas. José Ricardo Amaro, diretor de Recursos Humanos da organização, conta que a prática já resultou em aumento da performance e produtividade, redução de custos, maior motivação das equipes, autodesenvolvimento e, claro, melhoria na qualidade de vida dos colaboradores. Hoje, além do home office, a empresa também oferece o que eles chamam de flexplace, quando o colaborador pode escolher por realizar home office um ou dois dias na semana. “Outra possibilidade é a de eleger lugares de trabalho diferentes no prédio do Grupo, utilizando, por exemplo, o espaço de coworking, um ambiente que estimula a interação com mesas compartilhadas e de jogos, squads, phones booth, restaurante, cafeteria e auditório para pequenos eventos”, completa Amaro. 

Hoje mais de 340 pessoas trabalham via home office na Ticket e o que é determinante para a realização da prática são as atividades que cada um exerce, bem como possuir as ferramentas necessárias para isso. “A avaliação é feita pelo gestor da área, juntamente com os colaboradores e sempre os incentivamos a pensarem em ajustes que possam tornar o máximo de pessoas elegíveis e praticantes do programa, uma vez que acreditamos muito em seus ganhos”, conta o diretor, ao lembrar que, com a prática, a diversidade dentro da empresa também é favorecida: “A flexibilidade respeita todos os diversos perfis que temos na organização e, neste aspecto, pode ser utilizado por grávidas no final da gestação, como também por aquela colaboradora que está retornando de licença. Há também muitos profissionais que possuem necessidades especiais, como dificuldades de locomoção, por exemplo.” 

Na gestão pública também é possível 

Embora as transformações tecnológicas e de cultura organizacional geralmente aconteçam de forma mais lenta na esfera pública, é um erro pensar que não é possível aplicá-las também neste setor, mesmo que de maneira menos ampla. Um exemplo disso é o que vem fazendo, desde 2018, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-SP). Todas as unidades do Regional estão autorizadas a realizar trabalho remoto, entretanto, há um limite: apenas 30% da força de trabalho da unidade pode estar nessa modalidade, podendo chegar a 50% com autorização da presidência do Regional. 

Para que o home office pudesse, de fato, virar uma realidade dentro órgão, a juíza-coordenadora da comissão de teletrabalho do TRT-2, Roberta Dantas, conta que inicialmente foi estabelecida uma Comissão de Gestão do Teletrabalho que sugere alterações no normativo, propõe a realização de cursos e orienta as diversas áreas envolvidas na adequação dos procedimentos. Além disso, os colaboradores são avaliados se estão ou não aptos ao trabalho remoto e passam por avaliação anual para verificar se não há prejuízos em sua saúde física e mental com a adoção do sistema. 

A avaliação de desempenho desses servidores também é feita normalmente. “Elas são efetuadas pela chefia imediata, que verifica a qualidade do trabalho, o atingimento das metas de produtividade estipuladas no plano individual e a adaptação do servidor nessa modalidade de atuação. O regional encontra-se em grau avançado de informatização no âmbito administrativo e integralmente na área judiciária, sendo a aferição das tarefas medidas com uso de ferramentas eletrônicas”, destaca a juíza. Durante o atual período de quarentena, o TRT-SP implantou o teletrabalho para todos os seus servidores, conseguindo manter em funcionamento inúmeras atividades, inclusive o atendimento ao público via e-mail e telefone, o que demonstra a importância da existência anterior de uma política de teletrabalho neste momento de crise, que exigiu rápidas mudanças de todos os setores da sociedade. 

Não há dúvida de que muitos paradigmas em relação ao home office serão quebrados depois que tudo voltar ao normal. Resta torcer para que empresas e profissionais saiam fortalecidos desse período e tenham maturidade para aprimorar as políticas de teletrabalho em suas organizações. Se em tempos de pandemia o home office tem sido o salvador, imagine o que ele pode fazer pela sociedade em períodos de normalidade! 

No CRA-SP

Ciente da importância do teletrabalho, o Conselho mantém, desde 1999, um grupo de estudos sobre a prática. Atualmente, visando englobar ainda mais mudanças pelas quais passa a sociedade, o grupo anteriormente denominado Teletrabalho e Mobilidade Corporativa passou a se chamar Trabalho na Sociedade em Transformação - GETST. Fundado pelo Adm. Alvaro Mello e atualmente coordenado pela Adm. Vera Boscate, o grupo já promoveu inúmeros debates e eventos a respeito do home office e tem desempenhado importante papel na busca pelas melhores práticas dentro das organizações.




Revista Administrador Profissional - ADM PRO
Publicação física com periodicidade trimestral
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