Serviço público: um caminho para todos? - CRA-SP
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Serviço público: um caminho para todos?

Desejada por muitos brasileiros, a carreira no setor público, que sempre foi vista como sinônimo de estabilidade, salários atraentes e benefícios exclusivos, tornou-se uma saída em tempos de incertezas econômicas e transformações no mercado de trabalho. E, embora a segurança e a remuneração de alguns cargos sejam, de fato, muito convidativas, a ponto de a disputa por uma vaga atrair centenas de candidatos, a pergunta que surge é: atuar no setor público é um caminho para todos os profissionais?

Para Claudia Costin, administradora e conselheira do CRA-SP, a resposta é não. Dona de uma respeitável carreira no setor público, com atuação em diferentes cargos, como ministra interina da Administração e Reforma do Estado no governo Fernando Henrique Cardoso (1995 a 1998), secretária estadual da Cultura de São Paulo (2003 a 2005) e secretária municipal da Educação do Rio de Janeiro (2009 a 2014), entre outras funções de destaque, Claudia lembra que a carreira de administrador público é para quem deseja impactar a sociedade, sobretudo os mais necessitados. “Há um sentido de propósito e de autorrealização muito grande, especialmente sobre aqueles que mais precisam. As políticas públicas têm interdependências e é importante atuar nesse conjunto pensando nas famílias com recursos, mas o resultado maior é justamente para as menos favorecidas. Assim você constrói uma sociedade mais coesa”, afirma. 

Claudia Costin

A administradora complementa dizendo que ingressar na área pensando em estabilidade é uma lógica antiga, comum no século XX, época em que as famílias queriam que seus filhos prestassem concursos públicos buscando uma segurança profissional. Hoje, no entanto, Claudia lembra que o sentido da vida é muito mais amplo e envolve, principalmente, a diferença que você quer fazer na sociedade. “Recentemente encontrei um jovem em uma palestra e ele me falou que havia escolhido a sua carreira por minha causa, pois queria impactar a educação pública. É muito gostoso ouvir isso, porque essa pessoa certamente vai olhar para o seu trabalho de outra maneira, com mais engajamento”, conta. 

Quem compartilha da mesma opinião é o administrador Andrea Matarazzo, que também possui ampla experiência na área pública, tendo atuado na esfera federal como assessor especial no governo Fernando Collor, secretário de Política Industrial na gestão de Itamar Franco e ministro da Secretaria de Comunicação no governo Fernando Henrique Cardoso, além de secretário de Energia no governo Mário Covas (estadual), e subprefeito da Sé  na gestão de José Serra (municipal). Para ele, o trabalho na área pública precisa de vocação e a convicção de que o coletivo se sobrepõe ao individual. 

Matarazzo conta que, apesar de sua jornada profissional ter se iniciado no setor privado, foi a dimensão do setor público e a capacidade que ele tem de transformar o país que o encantaram. “Percebi que era ali que eu queria me dedicar, pois é onde você pode fazer a diferença e transformar a vida das pessoas”, ressalta.

        Murilo Lemos de Lemos

Desafios do setor público

Ao ocupar uma posição na esfera federal, estadual ou municipal, o profissional precisa ter ciência que vai se deparar com inúmeros desafios e entraves, como a burocracia e a lentidão dos processos, que podem, inclusive, inviabilizar o andamento de alguns projetos.  Para exemplificar uma das dificuldades do setor, o diretor-secretário do CRA-SP e também vice-coordenador do Grupo de Excelência em Gestão Pública - GEGP, Adm. Murilo Lemos de Lemos, cita o desafio de convencer os agentes políticos eleitos sobre a importância de implementar projetos de inovação e melhorias nos processos dos governos.

Outra barreira que impacta diretamente no trabalho dos servidores é a descontinuidade de planejamentos estratégicos e de projetos administrativos. Segundo Claudia, tal fato acontece quando há mudança de orientação de governo, ou seja, quando quem assume o posto é um partido de oposição à gestão anterior. “O profissional vê toda a estratégia que estava sendo criada dentro da política pública ser desconstruída. E isso é frustrante, porque eles olham para o que você fez e dizem ‘não é nada disso’”, comenta. 

Contrariando esse paradigma, a administradora lembra que a maior parte dos projetos que ela conduziu no período em que foi secretária da Educação no Rio de Janeiro não só se manteve, como foi aperfeiçoada. “Uso muito a metáfora da Muralha da China, na qual cada parte foi construída por uma geração, que até pôde ter feito ajustes no que já estava pronto, mas seguiu construindo a etapa seguinte. A metáfora serve para dizer que não é ameaçador que alguém evolua, faça mais do que você fez ou até descubra aspectos que você não tentou. Frustrante é ver tudo o que você construiu e achava relevante ser destruído”, enfatiza a administradora.

Alketa Peci

A rigidez da carreira é outro desafio que o profissional provavelmente irá enfrentar. Segundo Alketa Peci, docente da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas - FGV EBAPE,  mudar de uma carreira para outra dentro do regramento atual do serviço público brasileiro é mais difícil. “Permitir maior mobilidade é um dos aspectos que precisam ser melhorados com reformas administrativas, mas, por enquanto, isso ainda é muito limitado”, conta. 

Apesar de essa evolução ser mais lenta em comparação aos cargos no setor privado, Claudia lembra que o profissional não deve pensar em se eternizar em uma função. “Você pode organizar sua carreira, não prestando concurso todo ano como os chamados concurseiros, que querem melhorar o salário a cada ano, pois assim você não constrói o sentido de propósito, mas ficando alguns anos em uma posição, aprendendo com essa experiência e, então, partir para uma nova área na administração pública”, orienta Claudia.

Competências desejadas pelo setor

Assim como acontece dentro das organizações privadas, a área pública também tem valorizado habilidades socioemocionais, que vão além do conhecimento técnico. Matarazzo destaca a resiliência como um comportamento essencial para o profissional, já que os processos no setor são mais demorados e que em um governo tudo pode mudar a qualquer hora. “Não se assuste e nem fique conspirando, tenha a sua meta e trabalhe”, aconselha o administrador.

Saber trabalhar em equipe é outra competência fundamental. “O mundo no século XXI está centrado na resolução colaborativa de problemas e, no caso da administração pública, são questões complexas, que os robôs e a inteligência artificial não conseguem atuar com criatividade. Por isso, é fundamental persistência, espírito de equipe e abertura a novas maneiras de trabalhar”, acrescenta Claudia, ao lembrar, contudo, que essa característica ainda é difícil de ser avaliada em um concurso público baseado em provas escritas. 

Além dessas competências, Lemos diz, ainda, que para fazer a diferença e aprimorar a gestão, o profissional precisa ter capacidade de negociação, síntese e comunicação. “Ter boa capacidade analítica e de busca, bem como processamento e análise de dados também é importante”, complementa o administrador. 

Como ingressar e seguir carreira

Dados do Instituto República.org, com base na pesquisa do International Labour Organization (Ilosat), revelam que, atualmente, o Brasil tem por volta de 11 milhões de servidores públicos, o que representa algo em torno de 12,4% dos trabalhadores do País.

Para fazer parte desse seleto grupo, uma das principais portas de entrada é o concurso público que, por ser muito concorrido, requer dedicação intensa dos candidatos. “Os cargos de carreira exigem uma boa preparação, estudo, planejamento, disponibilidade de tempo e de recursos, especialmente para as vagas com salários maiores. Além disso, fazer simulados com provas aplicadas anteriormente também é uma boa estratégia”, diz Lemos.

Um exemplo de cargo muito concorrido na administração pública é o de diplomata. Para disputá-lo, Claudia conta que além da prova escrita o candidato também passa por uma entrevista. “Para se preparar para essas carreiras, especialmente as mais cobiçadas, precisa estudar muito a sério. Ser diplomata é uma carreira fantástica e a juventude, quando pensa em administração pública, raramente cogita ser diplomata, mas ela abre horizontes muito interessantes”, comenta.

Embora o concurso público seja o caminho mais conhecido para o ingresso no setor, ele não é o único. Lemos explica que há também os cargos de confiança e lembra que há um movimento crescente no Brasil para que estas vagas sejam preenchidas com critérios técnicos e profissionais e não apenas entregues a aliados políticos, amigos ou parentes. “Os cargos de confiança, em alguns casos, contam com um processo seletivo nos moldes do que vemos nas empresas privadas, mas não conferem estabilidade no emprego e são funções de assessoramento à direção ou de direção”, explica. 

Independente da forma de ingresso, o administrador lembra que é possível crescer na carreira. “O servidor público concursado também pode ocupar cargos de direção, mas para ascender a essas funções de comando é preciso dedicar-se: realizar bem seu trabalho e atuar no marketing pessoal para divulgar seus resultados positivos. Como na grande maioria dos órgãos públicos não existe um pipeline de lideranças estruturado, cabe muito ao servidor trabalhar individualmente na comunicação de suas conquistas, de forma que esses dados sensibilizem a alta direção, que poderá convidá-lo para exercer funções de liderança”, aconselha. 

Um segmento promissor

Para quem deseja contribuir com o País, desenhando melhores políticas públicas e, sobretudo, atuando no que há de mais desafiador, que é justamente a implementação delas, uma boa opção é a carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG).

Criada em 1987, com primeiro concurso em 1989, a estruturação dessa carreira contou com a participação de Claudia Costin, que na época atuava no Ministério da Fazenda. Segundo a conselheira do CRA-SP, o projeto é inspirado na Escola Nacional de Administração da França ((École Nationale d''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''Administration - ENA) e permite maior flexibilidade na gestão dos funcionários, ou seja, o especialista em políticas públicas pode ser alocado em diferentes ministérios dependendo da demanda. 

Nesse segmento, ao contrário de outras carreiras da área pública, o especialista tem maior mobilidade em diferentes posições do setor. De acordo com Alketa, docente da FGV, além dos ministérios, o profissional também pode trabalhar em agências executivas e reguladoras. “A carreira permite essa transição dentro de várias organizações do setor público federal, possibilitando, portanto, maior possibilidade de crescimento profissional e individual”, conta.

A carreira de EPPGG, contudo, também tem os seus desafios. Um deles, segundo Claudia, é em qual política pública o especialista vai atuar, afinal, ele não ficará apenas em uma só. “O desafio é que você é quase um generalista da gestão. Você sabe implementar políticas públicas, mas não necessariamente conhece os detalhes, por isso precisa ser bem assessorado. Por outro lado, isso torna a carreira muito interessante, pois você está sempre aprendendo”, esclarece.

Com salários bastante atrativos, a carreira de EPPGG conta com grandes talentos e, por isso mesmo, o concurso é muito concorrido, demandando conhecimentos especializados, que vão além da Administração, conforme aponta Alketa. “Os candidatos precisam estudar temas voltados às áreas de direito, política, sociedade, sociologia, administração pública e áreas afins”, comenta a docente. 

Para Claudia, o ingresso na área é uma grande oportunidade. “Essa carreira é uma ótima opção para os profissionais de Administração. Eles vão ajudar a resolver problemas concretos do País, melhorando o seu nível de desenvolvimento e contribuindo com a melhoria da saúde, da educação e da assistência social, por exemplo”, enfatiza a administradora. 

ENEM dos concursos públicos

O Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) anunciou recentemente a criação do concurso unificado para cargos públicos em órgãos federais, a fim de preencher milhares de vagas que estão abertas. O novo formato, popularmente conhecido como Enem dos concursos, conta com a participação de 21 órgãos federais, abrigando inclusive a seleção para a carreira de EPPGG. 

A proposta do concurso é que, com a prova unificada, os candidatos possam concorrer a vários cargos em diferentes órgãos federais, pagando uma única taxa de inscrição. O edital será divulgado em 10 de janeiro de 2024 e as inscrições terão início em 19 de janeiro e vão até 9 de fevereiro. A prova deve ocorrer em 5 de maio, de forma simultânea, em 217 municípios brasileiros. Ao todo, serão 6.640  vagas nesta primeira edição.

“A ideia fundamental do novo concurso é realizar processos seletivos, nos moldes de vestibular, em duas fases. A primeira delas com questões gerais, que costumam ser abordadas em todos os processos, como finanças públicas e direito administrativo. Já na segunda fase cada carreira tem sua prova de conhecimentos específicos. É um processo interessante que, se bem executado, racionaliza os custos e garante espaço para a participação de mais pessoas de todo o país, uma vez que estão previstas etapas virtuais”, explica Lemos.

       Andrea Matarazzo

Como se dar bem na área pública

Profissionais de Administração, independente de terem especialização ou formação na área pública, têm um espaço promissor no setor. Segundo a docente da FGV Ebape, existem carreiras que, com a devida especialização e conhecimentos mais aprofundados, podem se tornar uma futura opção para os administradores.

Para ela, quem almeja uma carreira no setor público precisa pensar nela como algo motivacional, ou seja, ir além do lado instrumental. “Trabalhar na esfera pública demanda um ethos público, isto é, servir pelo bem coletivo. São os aspectos motivacionais que vão manter a pessoa engajada”, orienta Alketa.

Já o conselheiro do CRA-SP sugere que o profissional tenha um olhar amplo para o setor, pois a área pública não se limita apenas aos governos em si, mas a um ecossistema de empresas que gravitam em torno dos órgãos governamentais e, juntos, desenvolvem melhores políticas públicas.

Matarazzo, por sua vez, aconselha que os profissionais se entusiasmem com o setor público, pois trata-se de um campo vasto, que cada vez mais vai precisar de profissionais adequados, competentes e criativos. “Veja mais de perto o significado da área pública e identifique onde você tem vocação. Lembrando que você sempre será um colaborador da sociedade, portanto, precisa ser resiliente e ter espírito público”, salienta o administrador.

Considerar a administração pública como uma área de atuação é recomendável tanto ao profissional que já está formado quanto ao jovem que vai escolher uma profissão, conforme sugere Claudia. “É claro que você pode contribuir com o país por meio da administração de empresas privadas, mas quando pensamos em pessoas impactadas, o efeito é muito maior na administração pública. É realizador, como ser humano, olhar e pensar: ‘eu fiz isso aqui’”, conclui.

Quer saber mais sobre o perfil ideal para o setor público? Assista, no vídeo abaixo, a entrevista concedida pelo Adm. Rodrigo Rennó, professor e especialista em políticas públicas e gestão governamental no CADE, ao Canal A Serviço da Administração. 





Revista Administrador Profissional - ADM PRO
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