As novas gerações, em especial a Z, não demonstram interesse pelos cargos de liderança. Especialistas comentam as prioridades desse público e os impactos dessa tendência no mercado de trabalho
Sabe aquela ideia de se formar, trabalhar em uma boa empresa, construir uma carreira bem-sucedida e chegar à liderança? Pois bem, se você se identificou com esse plano de carreira é provável que o seu currículo já possua algumas décadas de experiência. Isso porque, contrariando a ambição dos mais experientes, as novas gerações, em especial a Z - a última a chegar no mercado de trabalho - têm deixado claro que o desejo de alcançar os mais altos cargos nas corporações não faz parte da sua lista de objetivos profissionais.
De acordo com a pesquisa do consultor de carreiras de Harvard, Gorick Ng, apenas 2% dos jovens nascidos entre 1997 e 2012 têm interesse em chegar às posições de liderança. No estudo, Ng, que também é autor do best-seller The Unspoken Rules ("As Regras Não Ditas"), entrevistou centenas de jovens em todo mundo e identificou que as prioridades desse público são, por exemplo, a estabilidade financeira, o equilíbrio pessoal e profissional, a vontade de ser o seu próprio chefe e o desejo de impactar positivamente.
Entre os fatores que contribuem para a falta de interesse das novas gerações pela liderança, segundo Rafael Souto, CEO da Produtive e especialista em carreira, estão o excesso de horas de trabalho e a sobrecarga da liderança, aspectos que podem pesar na avaliação do jovem. “Ele vê o líder afogado na operação e repensa se quer seguir esse caminho”, comenta.
O modelo “comando e controle”, ainda presente em grande parte das empresas, é outro ponto que justifica o desinteresse dos jovens pelo topo da pirâmide corporativa. Segundo o Adm. Vicente Picarelli, especialista em gestão de pessoas e sócio-diretor na Picarelli Human Consulting, nesse modelo a relação se limita ao exercício do poder de uma pessoa sobre a outra, independentemente da capacidade do primeiro de orientar e desenvolver o segundo. “Esta hierarquia não é aceita pela maioria dos jovens, que vê refletida nela as experiências negativas vivenciadas por seus pais ou conhecidos”, esclarece.
Bem mais que um modelo ideal de trabalho, os jovens da geração Z têm um olhar profundo sobre propósito, explica Souto. De acordo com o CEO, a nova geração renuncia mais ao estresse e às cobranças excessivas no trabalho e demanda mais flexibilidade e qualidade nas trocas profissionais. Além disso, eles querem ter mais conversas sobre carreira com seus líderes, de forma personalizada e enriquecedora. “As decisões relacionadas à vida profissional estão mais conectadas com a compreensão de vida, valores e autoconhecimento. A carreira não é mais linear e nem previsível, assim como o ambiente no qual estamos inseridos”, diz.
Outro ponto que os novos profissionais valorizam nos ambientes corporativos é a relação colaborativa entre as pessoas, que se unem em prol de um objetivo. “Estes modelos são normalmente baseados em projetos. Não têm hierarquia e sua liderança, muitas vezes, é exercida de forma alternada”, conta Picarelli.
Os especialistas concordam que o fator qualidade de vida também tem influenciado a nova geração a abdicar dos cargos de liderança. “O excesso de trabalho dos líderes e o pouco espaço para o desenvolvimento de pessoas afugenta os jovens que valorizam a qualidade de vida como pilar da carreira”, alega Souto. Picarelli complementa que este quesito se tornou um direito inegociável. “O nível de consciência deste tema é que define suas escolhas profissionais”, diz.
A pesquisa global Millennial & Gen Z Survey 2023, promovida pela Deloitte no início deste ano, mostra que a nova geração avalia, também, o impacto que a empresa gera na sociedade e, claro, as diferentes formas de flexibilidade, como trabalhar menos horas sem afetar o desenvolvimento da organização, por exemplo.
A amostra brasileira do estudo, que contou com a participação de 800 jovens, sendo 500 da geração Z e 300 millennials, também revelou que metade dos gen-Z se sente ansiosa ou estressada na maior parte do tempo.
Outros tópicos do levantamento mostram as opções dos jovens em diversas situações: 31% já rejeitaram uma tarefa ou um potencial empregador por não concordar com os seus princípios éticos e crenças, 76% considerariam procurar um novo emprego se tivessem que trabalhar presencialmente em tempo integral e 69% acreditam ter o poder de promover mudanças.
O desapego pelos cargos executivos, na opinião do CEO da Produtive, pode alavancar um dos principais desafios que a área de Recursos Humanos vivencia nos dias atuais: atração e retenção de talentos, acirrando, assim, a competição entre as organizações.
Os impactos, no entanto, não param por aí. Segundo Dani Plesnik, líder de Talent na Deloitte, se não houver efetivamente uma ação que motive os jovens a desejarem os cargos de liderança, algumas deficiências podem ser geradas na economia e no ambiente de negócios, como a falta de inovação e criatividade, a ausência de diversidade de pensamento, o impacto na cultura organizacional e a perda de oportunidades para a juventude.
Até algumas décadas atrás, o perfil profissional seguia um padrão previsível e linear, no qual entrava-se na organização com o objetivo de ali permanecer até a aposentadoria. “As aspirações de gerações como as dos baby boomers (nascidos entre 1945 e 1964) eram guiadas pelo plano de carreira disponibilizado pelas empresas. Recusar um cargo de liderança era mal visto”, comenta o CEO da Produtive.
Hoje, porém, isso não é mais tão previsível e sua condução está nas mãos dos indivíduos. “O protagonismo de carreira é uma necessidade no novo mundo do trabalho, imprevisível e volátil. As decisões das novas gerações estão pautadas no desenho de vida dos indivíduos, no propósito e na satisfação”, complementa Souto.
A questão é que atualmente esses diferentes perfis profissionais, isto é, os baby boomers, a geração X (de 1965 a 1980), os millennials ou geração Y (1980 a 1995) e a Z (1995 a 2010) passaram a conviver juntos no mercado de trabalho. Embora não exista um modelo de carreira que agrade as particularidades das diferentes gerações, Souto afirma que é preciso personalizar a relação e, para isso, é necessário que os líderes conheçam suas equipes e dialoguem com os times.
“A prática de diálogos consistentes sobre carreira é uma das bases das relações nesse novo mundo do trabalho, assim como a construção de um ambiente de segurança psicológica e a abertura à diversidade de todas as formas. Não dá para a empresa ou o líder inferir o que acha melhor para a trajetória dos seus colaboradores. Essa é uma construção de cada indivíduo. Os mapas de sucessão das empresas devem levar em consideração essas mudanças e os interesses de carreira de cada colaborador”, orienta o CEO.
Diante desse novo cenário corporativo, a executiva da Deloitte considera importante que as lideranças atuais se adaptem e criem oportunidades de colaboração e troca. “Para atrair, manter talentos e até mesmo incentivar o alcance dessa posição, as empresas devem priorizar a harmonização entre trabalho e vida pessoal, promover um ambiente inclusivo e diversificado, oferecer opções flexíveis de trabalho, discutir e endereçar o bem-estar mental. Estamos todos reaprendendo a ser líderes após uma pandemia, trocando experiências do que pode ser feito de maneira diferente, harmonizando pessoas e negócios”, afirma Dani.
Se até poucos anos atrás, os líderes eram cobrados por entrega de resultado e alta produtividade, as análises atuais relacionadas ao perfil da liderança comprovam que o panorama está mais complexo. De acordo com a líder da Deloitte, o cenário está mais amplo porque, além do resultado financeiro, que mantém um negócio aberto, inseriu-se também questões de diversidade e inclusão, sustentabilidade e gestão emocional.
“Estamos em um período de muitas modificações na forma de trabalhar e o papel do líder do futuro (que já é agora) será o de olhar de modo mais abrangente para a atribuição das pessoas nas empresas, bem como a responsabilidade das organizações na sociedade. Isso traz um desafio maior ao utilizar habilidades, como criatividade, iniciativa, aprendizado contínuo e, claro, muita tecnologia”, sugere Dani.
Em relação à competência, uma das mais pertinentes para os líderes nos próximos anos, segundo o CEO da Produtive, é a future literacy (a alfabetização sobre futuros). Trata-se de uma disciplina criada pela UNESCO e citada pelo Fórum Econômico Mundial como uma das habilidades mais importantes para a liderança. “Ela diz respeito à capacidade de considerar cenários e analisar possibilidades para a empresa, o seu trabalho e sua carreira. Falamos em futuros possíveis, e dedicar tempo para construir macro-objetivos, avaliar condições e principalmente impulsionar as transformações é uma competência essencial para o líder de hoje e do futuro”, considera Souto.
E, com a tecnologia acelerando cada vez mais as mudanças nas corporações, Picarelli acredita que este líder do futuro também vai precisar combinar a inteligência artificial com a inteligência emocional para ativar o potencial humano. Basta saber se os jovens irão querer entrar nesse jogo.