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Escalada de problemas nas startups

Demissões em massa de colaboradores e denúncias de assédio no ecossistema de inovação do País ganharam destaque nos últimos meses. Saiba os motivos e o que está sendo feito em cada um dos casos

Depois de uma década de evolução e bonança (2011-2021) e um cenário de investimentos no ecossistema brasileiro que surpreendia a cada ano, nos últimos 18 meses, startups e grandes empresas de tecnologia sofrem com a desaceleração dos aportes. Para se adaptar aos novos tempos, enquanto tentam levantar outros investimentos para financiar suas operações, o segmento precisou adotar algumas medidas, entre elas, a demissão em massa, os chamados layoffs, de seus colaboradores.

Segundo Nelson Azevedo, conselheiro e executivo c-level, em 2021, os investimentos atingiram o volume recorde de US$ 10,5 bilhões, um crescimento de 194% em relação a 2020. Já no ano passado, o acumulado aplicado no ecossistema nacional alcançou US$ 5,2 bilhões, ou seja, a metade do valor do ano anterior, conforme aponta o LatAm Startup Activity Report, da SlingHub.

O recuo dos investidores provocou o ajuste no excesso de liquidez, que premiava a estratégia de crescimento a qualquer custo, sem a preocupação adequada com o lucro dos modelos de negócio. “Isso fez com que os grandes agentes financeiros (fundos de venture capital, de corporate venture capital, private equity, redes de investimento-anjo, entre outros) optassem pela volta ao básico (back to basics), e o crescimento acelerado (hyper-growth) cedeu espaço para uma busca de modelos de crescimento sustentável, com melhores taxas de retorno para os investidores”, conta o executivo.

Foto de Nelson Azevedo

Nelson Azevedo

Tal mudança faz com que os founders tenham que se desdobrar para defender melhor suas teses de investimento, resultando em menos pressão por valuations inflacionados. “Todo o ecossistema ganha com isso e é bom ter em mente que os tempos de investimento fácil, valuations nas alturas e teses mal fundamentadas ou pouco maduras ficaram no passado. Continuará existindo abundância de aporte, porém de forma bem mais seletiva e com mecanismos de avaliação e governança mais sofisticados”, complementa Azevedo.

Como se não bastassem as notícias sobre a onda de demissões em quase todas as empresas de tecnologia, das startups às big techs, em março deste ano um novo e sério problema veio a público: a denúncia de assédio no ecossistema de empreendedorismo e inovação do Brasil.

Carta aberta

Pessoas empreendedoras, empresárias, investidoras e profissionais de startups se uniram para assinar uma carta aberta, endereçada à Associação Brasileira de Startups (ABStartups), denunciando comportamentos de assédio moral, sexual, étnico e social no ecossistema de inovação do País. No documento, os denunciantes exigem que a entidade promova algumas mudanças para que as práticas abusivas não ocorram mais.

"Estamos convencidos de que é hora de enfrentar e eliminar tais comportamentos, fomentando um ambiente mais inclusivo e respeitoso para todas as pessoas. O assédio compromete o bem-estar físico e emocional das vítimas, limita oportunidades e inibe a criatividade e a inovação em nosso setor. Não podemos mais tolerar a perpetuação dessas práticas em nossa comunidade”, diz a carta.

No manifesto, escrito de forma colaborativa, as pessoas ainda exigiram que a Associação estabeleça um comitê independente, que seja responsável pela criação de políticas de prevenção e combate ao assédio em todas as suas formas; e desenvolva mecanismos de denúncias, que garantam a proteção das vítimas. Além disso, há outros pedidos, como incentivar as empresas a propagarem uma cultura organizacional de respeito, inclusão e diversidade; promover formação contínua quanto às questões relacionadas ao assédio; e, ainda, defender e apoiar a identificação e punição das pessoas assediadoras, independentemente do status ou posição.

Resposta da ABStartups

A ADM PRO entrou em contato com a entidade para saber o seu posicionamento quanto à carta e, em nota, a associação diz que recebe com respeito e acolhimento a petição contra o assédio no ecossistema de empreendedorismo e inovação e que tal prática é execrável e inaceitável. 

Foto de Isabela Corrêa

         Isabela Corrêa

Apesar do apoio, a ABStartups reconhece suas limitações: “Em que pese nos posicionarmos firmemente contra o assédio, na condição de associação setorial, nosso alcance é limitado. Nossa capacidade de influência no ecossistema, ainda que com alguma relevância, não alcança poderes executivo ou fiscalizatório.”

Na nota, a entidade anuncia, ainda, medidas que pretende adotar. Entre elas estão: a criação de um grupo com empresas associadas e profissionais voluntários, para desenvolver um guia de boas práticas de prevenção e combate ao assédio no ambiente de startups, e parceria com empresas que forneçam tratamento adequado às vítimas que procurarem esse tipo de ajuda, por meio de profissionais especializados em saúde mental.

Para Isabela Corrêa, fundadora e CEO da B.NOUS, startup de educação que mapeia e desenvolve as habilidades humanas nas organizações,  as medidas adotadas pela ABStartup focaram mais na linha da conscientização, o que é importante, pois traz sensibilização sobre o tema e a orientação às startups e outras vertentes do ecossistema, no entanto, tratam-se apenas de ações preventivas e paliativas. “Numa situação como a reportada, com fatos que já aconteceram, penso que as medidas de uma associação poderiam ir mais na linha de garantir espaço e ferramentas, para que as circunstâncias fossem apuradas e que se criassem mais mecanismos para ampliar as denúncias, acolher as vítimas e cobrar das entidades envolvidas uma governança mais rígida e profissional sobre o assunto”, aponta a CEO.

Foto de Ana Addobbati

Ana Addobbati

O movimento e sua importância

À frente de movimentos de combate ao assédio desde 2017, Ana Addobbati, fundadora da organização Livre de Assédio, foi uma das porta-vozes dessa manifestação. Ela conta que, desde o ano passado, o movimento das pessoas empreendedoras de startups vem tomando forma e várias vozes se movimentaram e se manifestaram em rede.

Ana diz que ações desse tipo já existem há alguns anos. Em 2019, por exemplo, ela acolheu vítimas de assédio sexual em eventos de hackatons, que reúnem programadores, designers e outros profissionais ligados ao desenvolvimento de softwares. “O Brasil vem, ainda bem, vivendo um processo em que as vítimas não se calam mais e sabem que não são as únicas. Ficou mais fácil identificar quem são os ofensores de um ecossistema que deve ser respeitoso como qualquer um”, comenta.

Para sustentar o combate efetivo a esse tipo de violência, a CEO da B.NOUS acredita ser necessário um conjunto de ações. Entretanto, ela afirma que uma manifestação como essa, que une diferentes pessoas, realidades e vivências, dá peso à luta. “Muitas vezes, infelizmente, uma única voz fica perdida, mas a força do coletivo tem maior impacto para, pelo menos, envergonhar, intimidar e fazer os envolvidos repensarem seus comportamentos e práticas”, enfatiza.

Formas de assédio no ambiente corporativo

Questionada sobre as atitudes que configuram assédio no ambiente de trabalho, Isabela esclarece que há dois tipos mais comuns: o moral e o sexual. Embora aconteçam mais frequentemente com mulheres, eles podem impactar ambos os gêneros. “O clássico do assédio sexual vai desde piadas com caráter obsceno, memes ofensivos, insinuações sobre a aparência, até atos físicos e ameaças, principalmente quando existe subordinação entre as pessoas. Já o assédio moral vai desde boatos, delegar tarefas fora do escopo, isolar a mulher após um retorno de maternidade, mudar a fala para um tom de voz insinuativo em meio a demais pessoas, entre outras ações”, explica a CEO.

Ana complementa dizendo que assédio é o mau uso de autoridade, podendo vir de lideranças ou, até mesmo, acontecer entre pares. Ela cita algumas situações vivenciadas, especialmente pelas profissionais. “As microviolências que tornam o ambiente hostil, desqualificam a funcionária e impedem que ela se sinta segura para desempenhar a sua função, também compõem mecanismos assediadores que adoecem e expulsam mulheres do ambiente de trabalho”, elucida.

Como agir em situação de assédio?

De acordo com a pesquisa #TrabalhoSemAssedio, realizada pela consultoria de inovação social Think Eva e o LinkedIn, com a participação de 381 profissionais, uma a cada seis mulheres pede demissão após uma situação de assédio antes de denunciar, por não acreditar que o seu empregador fará algo a respeito.

Isabela, que já foi vítima de assédio sexual e moral algumas vezes, comenta que, de fato, é difícil denunciar, porque ainda não existe um ambiente de confiança na maioria das empresas. “Lidei mal com isso, tive vergonha de reportar a situação para meus superiores ou para o RH e não tinha nenhum canal ou política para isso nas empresas em que trabalhei. Questionei se o erro era meu e, por um tempo, fingia que nada estava acontecendo, até que percebi que se eu não mudasse a forma como agia e reagia com o agressor, nada ia mudar. Passei a confrontar as insinuações e a questionar decisões ofensivas sobre mim ou outra mulher em uma situação que eu considerasse assédio”, revela a CEO da B.NOUS.

Com base em sua experiência, Ana sugere às vítimas de comportamentos abusivos que, em primeiro lugar, nunca achem que a culpa é delas e se isolem. E que, diante de um comentário ofensivo, se posicionem, caso sintam-se seguras para isso, e denunciem, se houver um canal.

“É essencial buscar rede de apoio, coletar evidências, anotar os fatos e datas para ter o cenário do ocorrido e quem eventualmente testemunhou. Entender que, no geral, o assediador repete padrão. Por isso que uma denúncia sempre vem acompanhada de outras”, orienta Ana.

Ações estratégicas nas organizações 

Para agir com eficácia na prevenção de situações de assédio, as organizações precisam implementar algumas ações. A CEO da B.Nous indica às empresas a criação de um canal seguro para denúncia; uma governança séria para tratar os relatos recebidos, com medidas tangíveis para cada caso; campanhas de conscientização; além de políticas que promovam a equidade de gênero e a igualdade de oportunidades na organização.

Sobre essa recente manifestação no ecossistema das startups, Isabela espera maior atenção por parte das empresas. “Que o conteúdo dessa carta não fique apenas na teoria. Precisamos acreditar que com essa denúncia, diálogo e trabalho, o ambiente corporativo vai melhorar no futuro”, conclui Isabela.


Entenda melhor a crise sobre os investimentos

O boom da captação de recursos para as startups, entre os anos de 2011 e 2021, elevou o valor do segmento a um patamar 69 vezes maior. A boa fase das rodadas de negócios favoreceu, ainda, o surgimento de novos unicórnios, conceito que faz referência às startups que possuem, antes mesmo de abrir capital na Bolsa de Valores, um valuation (valor de mercado) de US$ 1 bilhão. Entre 2018 e 2021, o segmento cresceu quase quatro vezes, o volume de investimentos multiplicou por seis e as empresas de tecnologia passaram a contratar em grande escala.

“E, de repente, em 2022, vivenciamos o início de um reset econômico global causado pela ‘ressaca’ pós-covid das políticas fiscais expansionistas (2020-2021) em vários mercados, guerra na Ucrânia e, particularmente no Brasil, a situação de instabilidade causada pela disputa eleitoral, gerando um cenário bem mais desafiador, voltando, aparentemente, para os mesmos níveis de investimento de 2019-2020”, explica Nelson Azevedo.

No ano passado, cerca de 30% das startups sofreram um down round (rodada de captação com valor de mercado inferior à captação anterior). No entanto, por mais que alguns agentes de mercado falem em escassez de investimento nesses últimos meses, Azevedo afirma que os fundos de venture capital (capital de risco) estão capitalizados e com cerca de US$ 2,5 bilhões em caixa para novos investimentos. “Não há crise estrutural! A retomada dos investimentos ocorrerá com estes atores melhores preparados e com regras redefinidas, para este novo ciclo de maturidade e evolução do ecossistema no Brasil”, conclui.


Canal de denúncias no CRA-SP

O CRA-SP, em parceria com a BDO Brasil, empresa independente e especializada, lançou recentemente o seu Canal Ético, que recebe denúncias sobre qualquer situação que viole princípios éticos, políticas, padrões de conduta e legislação.

O novo canal garante confidencialidade e sigilo absoluto, sem nenhum tipo de conflito de interesse, tanto para denúncias referentes à fiscalização do CRA-SP, envolvendo empresas e profissionais que atuam na área da Administração, como aquelas voltadas aos colaboradores ou demais integrantes do Conselho. 

A intenção é abrir mais um canal de comunicação com a sociedade, envolvendo questões importantes e que devem ser combatidas com a seriedade que merecem, como corrupção, exercício ilegal da profissão, assédio, entre outras. 

O canal pode ser acessado pelo site www.canaletico.com.br/cra-sp/ ou telefone 0800 591 4196 (em horário comercial).





Revista Administrador Profissional - ADM PRO
Publicação física com periodicidade trimestral
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