Big Quit: como as empresas lidam com a onda de demissões voluntárias - CRA-SP
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Big Quit: como as empresas lidam com a onda de demissões voluntárias

O movimento, que teve início nos EUA, já atinge empresas da China, Europa e Brasil, deixando claro que a relação dos profissionais com o trabalho mudou. Para atrair e reter talentos, organizações devem construir um novo modelo de negócio

Empresas de vários países vêm sendo impactadas pelo movimento conhecido como Big Quit ou Great Resignation (traduzido para o português como “a grande renúncia”) que tem gerado uma onda de pedidos de demissão em massa pelos profissionais. As desistências das vagas, diferentemente do que se pode pensar, não estão necessariamente relacionadas à conquista de um novo trabalho. Na verdade, as pessoas, voluntariamente, estão escolhendo deixar seus empregos sem, ao menos, ter outro em vista. 

Para compreender os fatores que têm levado os colaboradores a aderirem ao movimento, que teve origem nos Estados Unidos e já atinge companhias da Europa, China e até do Brasil, a Korn Ferry, empresa de consultoria organizacional, desenvolveu uma pesquisa global com 728 profissionais, em janeiro deste ano, e constatou que 32% das pessoas apontam como principal motivo da desistência a cultura da empresa, seguido por 28% que dizem estar insatisfeitos com as suas lideranças. “A baixa identificação com o  EVP (Employee Value Proposition - que significa proposta de valor ao empregado) da organização  e com o seu líder direto faz com que muitos profissionais busquem outra oportunidade mais próxima de seus valores e objetivos”, explica Aline Riccio, diretora da área de Recruitment Process Outsourcing - RPO & Projetos da Korn Ferry.

A grande renúncia ganhou forças durante a pandemia. Os desafios vividos nos últimos dois anos alteraram a rotina das pessoas, fazendo com que elas refletissem mais sobre novas possibilidades profissionais e pessoais. Tal análise, consequentemente, resultou em menos tolerância com condições de trabalhos ruins. 

Alexandre Pellaes

“É uma espécie de ‘gota d’água’ com relação a situações que eram consideradas insatisfatórias pelas pessoas e que ganharam nova dimensão com o isolamento durante a pandemia. Ou seja, elas ampliaram o senso crítico no que diz respeito ao que decidem tolerar na vida profissional. Nesse sentido, relações comerciais mais frágeis, sem significado, com características de comando e controle e pouca autonomia ficam totalmente sob risco”, analisa Alexandre Pellaes, professor, pesquisador e especialista em novos modelos de gestão e futuro do trabalho.

Big quit nos cenários internacional e nacional

Para dimensionar a onda de pedidos de demissão que atingiu as corporações em vários lugares do mundo, inúmeras pesquisas foram desenvolvidas desde o último ano. O Departamento do Trabalho dos EUA, por exemplo, divulgou dados, em janeiro, que mostram que quase 4,3 milhões de americanos estão deixando seus empregos a cada mês. Isso significa que o índice de demissões continua 23% acima dos níveis pré-pandemia.

Por lá, a maior incidência de demissão voluntária, segundo um estudo divulgado pela Harvard Business Review, está entre os norte-americanos de 30 a 45 anos, muitos deles com filhos. Outro levantamento, realizado pelo canal de assinatura CNBC e a empresa global de igualdade de gênero Catalyst, revela que 41% dos 903 trabalhadores entrevistados estão pensando em deixar o emprego porque a empresa não se importou com suas preocupações durante a pandemia. “As organizações que não humanizaram suas relações e não escutaram as necessidades de suas equipes foram as que mais sofreram”, afirma Pellaes.

Na China, o movimento ganhou outro nome: tangping (traduzido como “fique deitadão”). Com a taxa de desemprego em torno de 5%, o fenômeno atingiu mais os chineses de até 40 anos que preferem não fazer nada como forma de protestar contra o modelo de trabalho 996, ou seja, trabalhar 12 horas diárias (das 9h às 21h), seis dias por semana.

Já no cenário brasileiro, onde quase 12 milhões de pessoas estão em busca de trabalho e a taxa de desemprego, mesmo estável, ainda atinge patamares altos, por volta de 11%, uma grande parcela de trabalhadores não se intimidou com esses índices e também vem renunciando seus empregos. De acordo com um estudo encomendado pela VOCÊ S/A ao estúdio de inteligência de dados Lagom Data, todos os meses 500 mil brasileiros estão pedindo demissão, representando o dobro do que foi registrado nos anos anteriores à pandemia.

No estudo, a Lagom analisou quase 188 milhões de registros de movimentações trabalhistas do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), entre 2016 e novembro de 2021, e constatou que, em um ano, o volume de pedidos de demissão voluntária representa uma rotatividade de 15% nas vagas CLT.

Entre os que mais pedem para sair, 51% são colaboradores qualificados com mais de 25 anos, que possuem curso superior completo e atuam no mercado de trabalho privado, conforme identifica a Robert Half, primeira empresa de recrutamento especializado no mundo, na 18ª edição do Índice de Confiança Robert Half (ICRH), também com base na análise do CAGED.

                                                                 Rafael Almeida

“É importante observar que esses 11% de taxa de desemprego no Brasil refletem um índice de desemprego geral. Quando falamos de profissionais qualificados, acima de 25 anos, de média e alta gerência, o número gira em torno de 6,3%. Essas pessoas se sentem mais confiantes em pedir demissão porque, ao estarem mais preparadas, têm maior entrada no mercado de trabalho”, explica Rafael Almeida, gerente de parcerias estratégicas da Robert Half. 

Mesmo em menor número, é importante reforçar que a grande renúncia também chegou aos cargos operacionais. “Aqui no Brasil, o movimento acontece com mais ênfase proporcional no grupo de pessoas com até 30 anos, em cargos mais operacionais e que tiveram menor vínculo de conexão com as empresas ao longo do tempo”, acrescenta Pellaes.

Setores mais atingidos

A movimentação de profissionais tem sido grande em vários setores, em especial, no de tecnologia. Segundo a diretora da Korn Ferry, com a escassez de mão de obra qualificada em diversas modalidades de tech, em comparação à alta demanda de ofertas, o mercado criou uma “guerra” por esses talentos, fazendo com que eles recebam diariamente contato de empresas com propostas incríveis de novos empregos.

“O mercado de tecnologia tem mais de 200 mil posições em aberto que não conseguem ser preenchidas. Até o final de 2023 serão 500 mil vagas. Como se isso não bastasse, as empresas brasileiras estão sofrendo concorrência de companhias estrangeiras, como as de Portugal e Irlanda, que estão recrutando brasileiros para ganhar em euro”, complementa Almeida. 

O setor de finanças é outro que está com o mercado aquecido. De acordo com o gerente da Robert Half, os profissionais com sólida experiência e domínio do inglês estão sendo muito disputados pelas corporações. 

Também aparecem com destaque na onda de demissões os setores de varejo e serviços. “Nessas áreas, há considerável oportunidade de movimentação e existem muitas posições vistas como ‘emprego-ponte’, ou seja, um trabalho que não é o que a pessoa gostaria de fazer, mas é uma ocupação para conquistar renda mínima, até encontrar uma nova oportunidade”, comenta Pellaes. 

Estratégias para reter talentos

big quit fez os empregadores entenderem que para atrair e reter seus talentos é preciso uma abordagem mais humana, valores e propósitos bem estruturados e aplicados, além de meios disponíveis para construir e fortalecer o relacionamento, como remuneração, recompensas, benefícios, desenvolvimento, plano de sucessão, diversidade e inclusão.

“Os líderes no mundo inteiro estão fazendo um movimento de liderança gentil, que é aquele que se importa realmente com as pessoas. Outro ponto que vem ganhando adesão é o salário emocional, que é tudo o que não se vê na remuneração bruta, mas reflete em qualidade de vida, como os benefícios (dos mais simples aos mais complexos). Se as empresas se preocuparem de forma legítima com o profissional será um ótimo caminho para tentar reter os talentos”, orienta o gerente da Robert Half.

  Aline Riccio

A pesquisa da Korn Ferry apontou também que dentre os motivos para que os profissionais permaneçam no emprego estão o trabalho desafiador e gratificante (28%), os ótimos colegas de trabalho e gestão (26%) e o aumento de salário e benefícios (16%). “Vale reforçar que 47% dos profissionais que pediram demissão disseram ter recebido contrapropostas dos empregadores quando anunciaram o desligamento. Porém, 70% deles declararam que isso não foi suficiente para ficar”, comenta Aline.

Para Pellaes, o melhor que as empresas podem fazer nesse momento é ouvir o que os funcionários têm a dizer e planejar ações que considerem o bem-estar deles, de forma que a empresa não fique desorganizada ou quadrada. “Não é apenas sobre criar novos processos e práticas organizacionais, mas também sobre ter um esforço claro de escuta e de participação dos trabalhadores. É importante também que as empresas continuem se atentando a questões de diversidade e inclusão em seus ambientes, aumento do protagonismo e iniciativa, mesmo em interações virtuais ou presenciais, possibilitando que todos se sintam parte do propósito coletivo, trazendo conteúdo de qualidade e mantendo seus colaboradores atualizados.”

O que esperar dos próximos anos?

Uma coisa que a grande resignação deixou claro é que a relação com o trabalho mudou e esse cenário faz com que pessoas e organizações tenham que enxergar com corresponsabilidade a construção de um novo modelo. “Temos uma grande oportunidade de criar novas práticas e processos que gerem mais resultados para as empresas e mais satisfação para os empregados. No entanto, esse é um movimento de construção e todo processo de colaboração em grupo demanda abrir mão de alguns interesses individuais em função do bem comum. É um novo nível de consciência para o mundo do trabalho e estamos apenas começando a navegar por ele”, pontua Pellaes.

Para Almeida, hoje os profissionais estão muito mais críticos em relação à carreira do que estavam antes da pandemia. “As pessoas não vão pensar duas vezes diante de uma situação que realmente as incomoda no ambiente de trabalho. Hoje em dia, a decisão é muito mais rápida, porque elas se veem no mercado com possibilidades.”

Em contrapartida, o gerente da Robert Half não vê o movimento de big quit em todas as camadas no Brasil e, sim, naquelas que estão com o mercado mais aquecido. Ele lembra que, antes de entrar na onda da grande renúncia, é preciso analisar alguns pontos. “Primeiro, você já externou sua insatisfação para a empresa? Muita gente não se sente confortável em fazer isso, mas é recomendável procurar todos os meios possíveis para falar da sua situação. É preciso, ainda, ter algum suporte financeiro, senão você vai sair de um problema e criar outro. Vale avaliar, também, se seu networking está aquecido para essa mudança, além, é claro, do conhecimento que tem que ser atualizado a todo momento”, orienta.

Outro ponto importante a ponderar é a realidade do momento. “Existirá um conflito entre o que a pessoa quer e o que ela pode acessar agora. Não vale ter ímpetos de revolta e pensar ‘depois eu vejo o que vou fazer’, a menos, é claro, que haja risco para a saúde mental ou física. Caso contrário, atue com inteligência crítica e emocional. É necessário analisar o cenário do ramo em que se quer entrar, sair ou permanecer, e ver se esse movimento faz sentido para sua construção de futuro. Se faz sentido com consciência, vá fundo. Se não, repense”, sugere Pellaes.

Para se manterem atrativas e competitivas, a tendência é que as empresas deem um passo atrás para descobrir o porquê as pessoas estão deixando as organizações. Para ajudar nesse processo, a diretora de processos da Korn Ferry sugere analisar questões como remuneração, benefícios, cultura, proposta de valor, modelo de negócio, localização e o tipo de funcionários que estão saindo. “Fazendo o diagnóstico da empresa fica mais fácil de tomar as melhores decisões para atrair e reter talentos”, conclui Aline. 




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